Homenagens
3 de abril de 2011

Moacyr Scliar, um exército de adoradores e de gratidão em Teutônia

Médico e escritor marcou a história da Fundação Agrícola Teutônia e do Colégio Teutônia

colegio-teutonia01Leitores, de todas as idades, estão órfãos do magnífico escritor. Amigos de longa data, que lembram com gratidão da dedicação e atenção, estão órfãos de um médico verdadeiramente humanitário. A sociedade gaúcha está órfã de um grande cidadão. No dia 27 de fevereiro nos deixou o escritor e médico Moacyr Scliar, um ícone da literatura gaúcha, brasileira e sul-americana, membro da Academia Brasileira de Letras, título de Imortal que lhe foi concedido em 2003.

Aos 73 anos, Scliar deixa uma legião de admiradores, fãs de suas sábias e singelas palavras publicadas nos periódicos do estado ou em uma de suas mais de 70 obras. Vítima de um AVC (acidente vascular cerebral) e posterior falência múltipla dos órgãos, o imortal gaúcho fez renascer um dos momentos mais marcantes da história da Fundação Agrícola Teutônia (FAT) e do Colégio Teutônia.

Mais do que fonte de estudo em sala de aula, Scliar teve relação direta com a comunidade teutoniense, em especial na década de 60. Muitos atribuem a ele, como médico, a graça divina da vida.

Parafraseando um de seus memoráveis textos, este produzido especialmente para a comunidade escolar do Colégio Teutônia, o ano era 1965. Scliar era médico recém-formado e, em março daquele ano, recebeu um grupo de pessoas vindas de Teutônia. “Pessoas cultas, amáveis, muito diferentes dos outros pacientes. Mas essas pessoas estavam doentes, algumas delas bem doentes, e óbitos já se tinham verificado. O grande problema era: de que doença se tratava? O diagnóstico parecia obscuro, mas, dadas as características de surto epidêmico, o HI (Hospital de Isolamento) parecera às autoridades de saúde o local mais adequado para os pacientes”, escreveu Scliar.

O diagnóstico foi a doença de Chagas, enfermidade causada por parasita que pode comprometer o coração e outros órgãos, transmitida na maioria das vezes pela picada do inseto barbeiro.  “Não havia então tratamento específico e assim o que ajudou mesmo foi a passagem do tempo. Tempo durante o qual convivi com aquelas pessoas, tornando-me amigo de várias delas. Nasceu em mim uma enorme admiração pelo grupo. Que gente brava, que gente estóica, que gente admirável! Mostravam, naquele drama, uma coisa que o Rio Grande do Sul e o Brasil conhecem: a coragem do imigrante. Como jovem médico aprendi muito, então. Mas aprendi, sobretudo a reconhecer o valor de seres humanos. Sobretudo os seres humanos vindos de uma pequena e gloriosa cidade chamada Teutônia”, consta em um de seus textos produzidos especialmente para recordar aquele período, que o Colégio Teutônia teve especial cuidado em preservar com a confecção de um grande banner, exposto no hall de recepção do educandário.

colegio-teutonia02No ano de 2007, Moacyr Scliar foi um dos ilustres convidados da Feira do Livro e Escola Aberta do Colégio Teutônia, evento que teve como tema central “CT 55 anos – nossa história, outras histórias…”. Depois de terem trabalhado mais de dez obras do escritor ao longo daquele ano, os estudantes e comunidade foram presenteados com a participação de Scliar no evento, isso no dia 9 de novembro de 2007. Antes disso, no ano de 2000, ele também já havia participado da Feira do Livro e do Conhecimento promovida pelo Colégio Teutônia.

“A vinda do Scliar nos deixou muito orgulhosos. Foi um momento mágico, muito significativo”, comentaram os professores envolvidos no projeto na época. “Tivemos a oportunidade de ler ótimos livros e conhecer um famoso escritor, que destacou a importância dos livros na vida das pessoas”, avaliou a então aluna da 3ª série do Ensino Médio Ana Martha Czajkowski. “A vinda do Moacyr Scliar à escola foi muito importante, afinal, não é qualquer escritor, mas um Imortal e, talvez, o mais importante da Literatura gaúcha”, acrescentou Samuel Osterkamp, também ex-aluno da 3ª série do Ensino Médio.

A gratidão que guarda no coração transbordou em lágrimas no rosto do ex-professor de música do Colégio Teutônia e um dos sobreviventes daquele mês de março de 1965, Hélio Altmann, hoje com 67 anos. “Todos começaram a sentir os primeiros sintomas no mesmo dia, 15 de março de 1965: mal estar, falta de ar e muita dor abdominal e pelo corpo. Levado a Porto Alegre, fiquei dois meses internado no hospital sendo tratado pelo então Dr. Moacyr Scliar, um jovem muito simpático, bondoso, um excelente profissional e uma pessoa fora de série”, recorda seu Hélio, bastante emocionado com a perda de um amigo, como ele classifica. “No período em que estive internado, não podia manter contato com visitas, e as conversas com o médico faziam superar os problemas impostos pela doença e pelo isolamento que o tratamento obrigava”, acrescenta.

colegio-teutonia03O teutoniense se revela um leitor assíduo das colunas escritas por Scliar no jornal Zero Hora e acompanhou pela imprensa seu sofrimento e sua luta pela vida. “No domingo (27), com o minuto de silêncio antes do jogo entre Grêmio e Cruzeiro, já imaginei que o pior poderia ter acontecido. Fiquei muito sentido e vou sentir sua falta”, conclui seu Hélio.

O Colégio Teutônia presta sua homenagem ao médico e escritor, mestre das palavras Moacyr Scliar. Mais que um Imortal da Academia Brasileira de Letras, Scliar será eternamente aquele ser humano extremamente simples e gentil, que um dia deu a sua grande contribuição pela comunidade de Teutônia. O seu “Exército de um Homem Só”, uma de suas obras mais importantes, seguirá com um exército de leitores e adoradores. Obrigado Scliar.

Colégio Teutônia

O ano era 1965. Médico recém-formado, fui trabalhar no Sanatório Partenon, antigo hospital da Secretaria Estadual da Saúde, localizado no bairro do mesmo nome, em Porto Alegre. O Partenon havia sido construído pelo Ministério da Saúde para atender pacientes com tuberculose; naquela época, esses pacientes deveriam ser obrigatoriamente internados na primeira fase do tratamento. A maior parte dos leitos estavam, portanto, ocupados por tuberculosos, mas atrás dos pavilhões do hospital propriamente dito, havia uma pequena e precaríssima construção, que era o Hospital de Isolamento (HI), destinado a outras doenças contagiosas, como a varíola, então ainda freqüente. Como se pode imaginar, os enfermos hospitalizados no Partenon era gente pobre, humilde. Daí a nossa surpresa quando, em março de 1965, recebemos um grupo de pessoas vindas de Teutônia. Pessoas cultas, amáveis, muito diferentes dos outros pacientes. Mas essas pessoas estavam doentes, algumas delas bem doentes, e óbitos já se tinham verificado. O grande problema era: de que doença se tratava? O diagnóstico parecia obscuro, mas, dadas as características de surto epidêmico, o HI parecera às autoridades de saúde o local mais adequado para os pacientes.

Dois médicos coordenavam o atendimento: o doutor José Rodrigues Coura, epidemiologista vindo do Rio de Janeiro especialmente para investigar o problema e o doutor Iseu Gus, médico do Instituto de Cardiologia do RS. Sua presença se explicava pelo fato de que muitos dos pacientes tinham problemas cardíacos, ainda que não característicos. Finalmente eu fui integrado à equipe para ajudar no que fosse necessário.

Foi um período sombrio, para dizer o mínimo. O diagnóstico continuava controverso. A hipótese de doença de Chagas foi levantada. Trata-se de uma enfermidade causada por parasita que pode comprometer o coração (como acontecia em muitos daqueles casos) e outros órgãos, inclusive de forma aguda. Acontece que, na imensa maioria dos casos, o agente é transmitido pela picada de um inseto chamado barbeiro. Seria pouco provável que esse inseto tivesse atacado tantas pessoas ao mesmo tempo. Naquele tempo pouco se falava de uma outra possibilidade de transmissão da doença, por via digestiva; mas três surtos, um em Belém (1969) outro em Catolé da Rocha (1986) e, principalmente o surto de 2005 em Santa Catarina, em que pessoas se infectaram com caldo de cana contaminado, mostraram que essa possibilidade era real. De qualquer maneira não havia então tratamento específico e assim o que ajudou mesmo foi a passagem do tempo. Tempo durante o qual convivi com aquelas pessoas, tornando-me amigo de várias delas. Nasceu em mim uma enorme admiração pelo grupo. Que gente brava, que gente estóica, que gente admirável! Mostravam, naquele drama, uma coisa que o RS e o Brasil conhecem: a coragem do imigrante. Nosso Estado foi em grande parte povoado por gente que veio da Europa em busca de um sonho e que aqui lutou arduamente para consegui-lo. Como jovem médico aprendi muito, então. Mas aprendi, sobretudo a reconhecer o valor de seres humanos. Sobretudo os seres humanos vindos de uma pequena e gloriosa cidade chamada Teutônia.

Moacyr Scliar

Fonte: Colégio Teutônia