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1 de março de 2018
Redescobrindo Scliar | Cíntia Moscovich analisa “Entre o shtetl e o gulag”

Foto de Anderson Fetter

São inúmeros os célebres trabalhos de Moacyr Scliar que se tornaram queridos junto ao público e à crítica. Há também, entre tantos romances, contos e crônicas de sucesso, trabalhos que, ainda hoje, podem ser descobertos.

E é com a proposta de garimpar esses escritos que ficaram em menor evidência na carreira do escritor que convidamos amigos e colegas de Moacyr Scliar para comentar textos que mostram o quanto a sua obra pode ser sempre reapreciada.

Para começar, confira a análise da escritora Cíntia Moscovich para “Entre o shtetl e o gulag: vozes do judaísmo russo”, texto publicado originalmente por Moacyr Scliar na revista Shalon.

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Em “Entre o shtetl e o gulag: vozes do judaísmo russo”, texto inicialmente publicado na revista Shalom, editada por Patricia Finzi, com ricas ilustrações de Ester Gurevich, Moacyr Scliar faz um rico recorrido histórico, lançando uma luz ao mesmo tempo esclarecedora e apaixonada sobre as adversidades impostas ao povo judeu na Europa, de maneira geral, e na Rússia, de maneira específica.

Desde a dispersão ao tempo da conquista assíria em 722 a.C., perpetuando-se sob o domínio grego e romano e tornando-se regra na Europa Medieval, os judeus vagaram, orientados exclusivamente pelas mesmas forças que orientam os fluxos migratórios, a melhoria nas condições de vida. Como agravante, havia também a necessidade de manter identidade do grupo e do povo, característica que nem sempre, ou quase nunca, seria bem-vinda.

Scliar é um autor sensorial. Aqui, nesse texto, tudo se inicia com uma imagem. Ao olhar uma foto de sua mãe e nela perceber os malares fortes e angulosos, se dá conta que aquele é o rosto de uma camponesa russa. A lógica que precede aquelas feições é curiosa, e Scliar arrisca um palpite: comprimidos entre os cristãos, ao norte, e o Islã, força crescente, ao sul, os khazares, povo seminômade de origem turca, estão assentados em território russo e teriam visto no judaísmo uma forma de manter a independência e a neutralidade. Convertidos, o expediente durou bem por dois séculos: em 970 d.C. um exército russo destruiu o reino da Khazaria — mas não o legado do judaísmo pelos khazares cultivado.

Adiante no tempo, Scliar passa pela Revolução Francesa e pela Assembléia Nacional que estruturou o ideário da nova ordem e sua relação com indivíduos e com nações.
Expulsos da Península Ibérica, da França, da Alemanha, os judeus rumam para Leste: buscam o Império Russo, que se expande para Oeste. Comerciantes experientes, falantes de várias línguas, os judeus conseguem rica vida espiritual ao mesmo tempo em que se iniciam as perseguições: os pogroms

Em 1708, Pedro, o Grande, permite que os judeus se estabeleçam em Petersburgo, embora sem ser acolhidos. É o início do núcleo da da existência material e espiritual do povo: o shtetl.
Na sequência, Scliar conta da vinda para o Rio Grande do Sul, citando o o escritor Marcos Iolovitch em “Numa clara manhã de abril”. E lembra de Isaac Babel, que se alistou na Cavalaria Vermelha, fato que resultou em relatos impressionantes. Depois, já na década de 1920, os bolcheviques começaram a encorajar os judeus a se dedicarem a terra, em colônias judaicas na Criméia, em Kherson e no Birobdjan, esforço que falhou fragorosamente.

Quando da invasão alemã à Rússia na 2a Guerra, embora o morticínio tenha sido grande, Moacyr comenta que a resistência judaica foi corajosa. Após a criação do Estado de Israel, estabeleceu-se a grande perseguição a todos quanto solicitavam visto, fato que resultava em cenas de nonsense e que chegou a originar muitos movimentos mundo afora.
Assim, desde tempos remotos, passando por Sholem Aleichem, indo de Chagall a Isaac Babel, dos partisans judeus à acolhida no mundo novo, o texto de Scliar torna-se, desde já, importante material de pesquisa.

CÍNTIA MOSCOVICH