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11 de abril de 2017
Metade homem, metade cavalo, à procura de Sião

Era uma vez um centauro judeu nascido no Brasil, uma história rara e brilhante. E era uma vez Moacyr Scliar, o médico-escritor que a escreveu em 1980 e que continua a ser uma referência.

Por: João Pedro Vala

Título: “O Centauro no Jardim”
Autor: Moacyr Scliar
Editora: Caminho
Páginas: 328

Em O Centauro no Jardim, Moacyr Scliar conta a história de Guedali Tartakovsky, um centauro judeu nascido em 1935 no interior do Brasil. No entanto, ao contrário do que seria de esperar (e contrariando o que acontece nas duas grandes narrativas da literatura ocidental do século XX de que este romance é herdeiro, a Metamorfose de Kafka e a história de Benjamin Button, de Fitzgerald), a nota dominante do romance não é o horror à monstruosidade mas antes a ternura.

Guedali sente uma imensa ternura pelos pais quando os entrevê uma vez a dormirem juntos, as suas irmãs estão constantemente enternecidas pelo irmão mais novo e é com ternura que Guedali fala do momento em que conhece a sua mulher, Tita, também ela uma centaura. Contudo, o talento de Moacyr Scliar revela-se na simplicidade com que esta ternura se articula com uma melancolia que nunca cai no histerismo ou na afectação, sendo o exemplo maior desse convívio o momento em que Guedali narra a felicidade que sentira quando lhe fora permitido aprender violino. O centauro passeia-se pelos campos a tocar violino até que uma corda se parte. Aí, sem que nada o fizesse prever e com um tom extraordinariamente sóbrio, o centauro arremessa o violino da família para o fundo do rio e tenta suicidar-se com uma violência tal que apanha o leitor completamente desprevenido.

Sozinho no porão, extraio de uma tábua podre um grande prego. Golpeio-me repetidamente o dorso, o ventre, as patas, o peito, mordendo os lábios para não gritar. O sangue brota, não paro, continuo a me ferir” (página 51).

É esta entrada em cena da melancolia que nos permite perceber a estridência com que Guedali e quase todas as outras personagens se agarram à ternura e àqueles que os rodeiam para dessa forma afugentarem a solidão e a melancolia que os persegue. Assim, a doçura de O Centauro no Jardim não nasce de uma crença irredutível na bondade da humanidade mas antes da construção de uma boia a que as personagens se agarram desesperadamente para não se afogarem, enquanto tentam fingir que o oceano lhes dá pelo pescoço.

Ainda a propósito desta ideia, é de notar que o judaísmo em O Centauro no Jardim não é apenas um cenário à frente do qual a história se desenrola, mas antes uma força que, ainda que em surdina, influencia fortemente o romance. Quando Guedali nasce, o pai, espantado ao ver o centaurinho, consegue apenas refrasear o livro de Job, tentando perceber porque fora ele o escolhido para tal infortúnio: “Por quê foi ele o escolhido, e não um cossaco da Rússia? Por quê ele, e não um peão, um fazendeiro dos arredores? Por quê? Que crime cometeu? O que fez de errado para que Deus o tenha castigado dessa maneira? Por mais que se interrogue, não consegue atribuir-se pecados, pecados graves, pelo menos. Faltas menores, talvez. Já ordenhou uma vaca num sábado” (página 30).

É, no entanto, em Guedali e em Paulo, o seu melhor amigo, que se revela com maior força a influência judia. Paulo vive a vida inteira a desejar regressar a Israel. Paulo insiste repetidamente na ideia de que se sente vazio e deslocado no Brasil e só encontra conforto quando decide construir, em plena São Paulo, um condomínio fechado que reproduza, com todos os luxos, um kibutz, para que, não podendo já regressar a Sião, a Terra Prometida venha até si. Da mesma forma, a tensão causada pela distância a casa e o desconforto por aparentar ser semelhante aos que o rodeiam sem, apesar disso, conseguir pertencer a nenhum sítio é o que leva a que Guedali, depois de deixar de ser centauro, deseje repetidas vezes ter de novo as patas traseiras ou voltar à casa onde nascera, mesmo que esta esteja coberta de vegetação, podre e completamente inacessível.

Esta vontade de pertença reflecte-se ainda na forma como Guedali lê. Uma vez que a sua condição de centauro, em pleno século XX, o obriga ao isolamento e o força a passar os dias recolhido em casa, Tartakovsky passa muitas horas a estudar. Guedali lê inúmeros romances, lê o Antigo Testamento de fio a pavio, lê Freud e lê Marx. No entanto, ao ler, apenas uma coisa o preocupa: Guedali salta páginas inteiras, parando apenas quando encontra palavras-chave, como cauda, galope e, principalmente, centauro, porque lê à procura de explicações para aquilo que é, e o valor que dá ao que estuda está inteiramente dependente do que de si mesmo lá encontra:

Psicanálise, materialismo dialético- nada, nada; ficção- nada; nada parecia aplicável ao meu caso. Centauro, irremediavelmente centauro. E nenhuma explicação plausível” (página 76).

Guedali franze os olhos para que os cavalos da Bíblia se transformem magicamente em centauros e para que possa, assim, encontrar algum lugar a que pertença, mas o máximo que consegue é que estes se transformem em camelos, não conseguindo assim moldar as Escrituras de forma a que a elas possa, tal como o resto da sua família, pertencer.

Se tudo o que acima é dito é verdade, o que mais impressiona em O Centauro no Jardim é, todavia, o apuradíssimo sentido de humor de Scliar (note-se a este respeito o momento em que Guedali narra o momento em que a parteira lhe preparara cuidadosamente a cama depois do parto e acrescenta entre parêntesis: “pensaste em palha, parteira? Confessa, pensaste em palha?” (página 28)) bem como a minúcia com que o escritor constrói esta fábula, fazendo sempre o seu enorme virtuosismo depender do interesse da história.

Nenhum pormenor é descurado por Scliar: desde os primeiros passos de Guedali que, sendo metade cavalo, são dados logo nos seus primeiros dias de vida (“as mãos ainda se movem sem propósito, incoordenadas, os olhos já não identificam as imagens nem os ouvidos os sons e já as patas transportam para cá e para lá um corpo que não se sustenta, que oscila grotescamente como o de um boneco” (página 45)) à descrição do momento em que, ao tentar, como todos os bebés fazem, meter o seu pé na boca, Guedali dá um coice em si próprio que o deixa a chorar, tudo na história aponta para uma coerência interna tremenda para a qual até as falhas narrativas contribuem, como se percebe no capítulo final do romance.

João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.

Fonte: Observador