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24 de abril de 2020
Moacyr Scliar, o leitor: livros, autores e personagens admirados pelo escritor

“Contar e ouvir histórias é fundamental para os seres humanos; parte de nosso genoma, por assim dizer. Sob a forma de mitos, as histórias proporcionavam, e proporcionam, explicações para coisas que parecem, ou podem parecer, misteriosas. De onde veio o mundo? De onde surgiram as criaturas que o habitam? O que acontece com o sol quando ele se põe? Mitos ou histórias proporcionam explicações que, mesmo fantasiosas (ou exatamente por serem fantasiosas), acalmam nossa ansiedade diante da vida e do universo”, escreveu Moacyr Scliar no livro “O texto, ou: a vida – Uma Autobiografia Literária.

A partir dessa obra específica, é possível descobrir sobre muito dos livros e dos personagens que marcaram a vida de Moacyr Scliar como leitor. Nossa proposta aqui no site é começar a falar sobre alguns deles. Primeiro lembramos, claro, os personagens que habitaram o imaginário infanto-juvenil de Scliar, desde aqueles que vinham das histórias contadas pelos pais e pelos vizinhos até aqueles que encontrava em livros de autores nacionais e estrangeiros.

São alguns dos personagens citados por como aqueles que o intrigaram, encantaram e até mesmo assustaram: Saci-Pererê, Negrinho do Pastoreio, Cuca e Emília, Hércules, Teseu, os Argonautas, Mickey Mouse, Tarzan, os Macabeus, João Felpudo, Huck Finn. Para o autor, também ficam na memória os contos populares que serviram de base para autores como Charles Perrault, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen. Por fim, ainda no âmbito infanto-juvenil, Moacyr gostava de investigar todos os autores que, de alguma forma, estudaram a magia dos contos de fadas e as narrativas populares em geral, entre eles Vladimir Propp, Bruno Bettelheim (“A Psicanálise dos Contos de Fadas”), Robert Darnton e Marie-Louise Von Franz (“Uma Introdução à Interpretação dos Contos de Fadas”).

Já na vida adulta de Scliar como leitor, um de seus expoentes era o escritor estadunidense Harold Bloom (1930 – 2002). Também conhecido por sua ampla contribuição como crítico literário, Bloom foi professor da Universidade de Yale e publicou mais de 40 livros, como “Hamlet: Poema Ilimitado”, “O Cânone Ocidental” e “A Anatomia da Influência”. Scliar gostava particularmente de “O Livro de J” (1992), onde Bloom explora a mítica figura de “J”, escritora sem nome e “figura destacada da elite do rei Salomão” que estudiosos acreditam ser responsável por um texto escrito entre 950 e 900 a.C. no qual se baseia Gênesis e Êxodo. Bloom oferece uma discussão sobre a teoria de como os diferentes textos de J foram reunidos para criar a Bíblia, revelando sua imponente originalidade e compreensão da humanidade. O ensaio do autor inspirou Scliar a escrever um de seus romances mais clássicos: “A Mulher Que Escreveu a Bíblia”, lançado em 1999. Abraçando abertamente essa inspiração, Scliar cria uma personagem que transita entre a elevada dicção bíblica e o mais baixo calão, com uma narrativa repleta de malícia, irreverência, sátira e aventura.

Também médico sanitarista, Moacyr Scliar tinha, desde pequeno, muito medo de ficar doente. Tinha mais medo ainda quando pais ou irmãos adoeciam. Ou seja, a escolha pela faculdade de Medicina não veio por coincidência. Esse pânico assumido – e que ele também compartilhou no livro “Uma Autobiografia Literária: o texto, ou: a vida” – levou Scliar, ainda jovem, aos livros que tinham doenças e a medicina como pontos centrais. Esse é o norte de mais um capítulo da nossa série “Moacyr Scliar, o leitor”

Duas obras ficcionais e de teor médico faziam parte da sua lista de favoritas. A primeira era “Olhai os Lírios do Campo”, de Erico Verissimo, que conta a história de Eugênio Pontes, moço de origem humilde que se forma médico e, graças a um casamento por interesse, ingressa na elite da sociedade. Nesse percurso, o protagonista é obrigado a virar as costas para a família, a deixar de lado antigos ideais humanitários e a abandonar a mulher que realmente ama. É definido por muitos como um convite à reflexão sobre os valores autênticos da vida.

Já a segunda é “A Cidadela”, do escocês A.J. Cronin. O livro descreve as condições de trabalho do início do século XX e relata de um modo estarrecedor as dificuldades e tragédias ocorridas nas minas de carvão inglesas, tendo como protagonista o jovem médico Andrew Manson, que inicia sua prática profissional numa pequena aldeia do País de Gales, Drineffy. Dr. Manson dedica-se de forma intensa aos seus doentes, pondo em prática todo o idealismo de um jovem médico.

Para Scliar, essas foram obras importantes na sua formação como médico e leitor. “Ambas denunciam a mercantilização da medicina e idealizam o papel do médico como um verdadeiro herói”, contou o escritor em “Uma Autobiografia Literária”.

* por Matheus Pannebecker, especialmente para o site