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22 de maio de 2018
Redescobrindo Scliar | Entre o imaginário infantil e o conflito identitário judaico

“A Guerra no Bom Fim” é um clássico de Moacyr Scliar que trata, entre outros temas, sobre o imaginário infantil e o conflito identitário judaico. E é a partir dessas duas perspectivas que a doutoranda em letras da UFRGS, Christini Roman de Lima comenta o célebre livro do escritor na nossa série Redescobrindo Scliar. Confiram, abaixo, o texto completo!

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A Guerra no Bom Fim é o romance de estreia de Moacyr Scliar. Ele foi publicado no ano de 1972 e retrata a trajetória de formação de Joel, um judeu pertencente à primeira geração de imigrantes nascidos no Brasil, que procura encontrar o seu lugar entre as tradições judaicas e a cultura do país de acolhimento. A Guerra no Bom Fim, em sua primeira edição, era composta por quatro partes: a infância do protagonista – sem título; a juventude – “A Guerra no Morro da Velha”; e a vida adulta – dividida em: “A Guerra em Israel ou o progresso do peregrino”; e “A guerra na unidade coronária”. Posteriormente a obra foi modificada, sendo mantida apenas a parte inicial.

A trama da primeira edição discorre sobre o imaginário e os conflitos do menino (como a morte prematura de seu irmão, o antissemitismo e a guerra), passa pela crise identitária do jovem e aporta na busca do homem por suas origens – as quais se desdobram no reflexo de Joel sob o rosto de um palestino, Abu Shihab, e no reencontro com o Bom Fim. O romance de Scliar começa em meio à Segunda Guerra Mundial – a trama inicia no ano de 1943. A guerra está associada ao imaginário infantil de Joel e é, deste modo, abordada apenas pelo ângulo do imaginário, mas, ainda assim, demonstra os efeitos do conflito na formação do garoto e em toda uma geração de judeus que não estavam diretamente envolvidos no evento, mas sofreram as repercussões advindas dele.

O enredo, em sua primeira parte, é fortemente marcado pelo fantástico, já que a história é construída sob a perspectiva de Joel criança e conta com um narrador discreto, colado ao protagonista. Portanto, na primeira parte do enredo, a narrativa se dá através do olhar do menino sobre o mundo a sua volta. No segundo momento, o texto acompanha a perspectiva do jovem Joel e, consequentemente, ganha aspecto realista.

A guerra, além disso, é um elemento de grande importância no romance, sendo que está presente na primeira parte enquanto elemento conversor da imaginação do garoto: é o motor do imaginário infantil de Joel e representa papel fundamental na formação do sujeito. Na primeira edição, de 1972, a guerra também aparece na parte final, no “eterno retorno” da história em que o homem descobre-se em sua peregrinação, sendo que a guerra caracteriza-se novamente como fundamental na formação do menino Abu Shihab, o “outro” de Joel.

Outro elemento crucial na intriga de A Guerra no Bom Fim diz respeito à angústia identitária, essa questão atravessa a obra de Scliar e é parte fundamental da trajetória do povo judeu, conforme destaca Hannah Arendt (1979, p. 19): “em parte alguma e em tempo algum depois da destruição do Templo de Jerusalém (no ano 70) os judeus possuíram território próprio e Estado próprio; sua existência física sempre dependeu da proteção de autoridades não-judaicas”. Por não disporem de um território e Estado próprios, os judeus passam a viver o dilema entre a assimilação e a marginalização. Este dilema é caracterizado, no enredo de Scliar, através da migração judaica, retratado por meio da família de Joel, composta por Leão e Pessl, seus avós, Samuel e Shendl, seus pais, Nathan, seu irmão, e Malke Tube, a égua da família.

Leão e Pessl, buscando fugir do clima, da miséria e dos pogroms da Rússia czarista, partem com a família para o sul do Brasil, incentivados pelas promessas de um futuro melhor e pela perspectiva oferecida pela Jewish Colonization Association de tornarem-se lavradores nas colônias de Quatro Irmãos, no Rio Grande do Sul. Leão e família deixam a Rússia para tomar posse de uma gleba de terra na colônia de Filipson, entretanto, mostraram-se inaptos para vida rural. Leão era alfaiate, “sabia manejar agulha e linha, não a enxada”. A promessa inicial não se concretiza e, mais uma vez, a família tem de “levantar âncoras” rumo à urbana Porto Alegre e ao bairro do Bom Fim.

Da promessa migratória de Filipson resta apenas a égua Malke Tube – que apareceu nas terras de Leão “como milagre”: “a primeira dádiva que receberam” (1972, p. 13). Malke Tube, outrora a égua sensual, debochada e “Maliciosa”, tornara-se, para eles, o símbolo da esperança de uma vida promissora, o último vestígio das colônias que motivaram a migração. Esta “primeira dádiva” – insígnia da “Fortuna”, ou seja, do destino venturoso que “estava-lhes escrito” – concedida à família, no entanto, tem de ser açoitada para “gerar frutos” e, ainda assim, jamais se entrega plenamente a eles.

Samuel, por sua vez, pertence à segunda geração de judeus imigrantes e, mesmo nascido na Rússia, passa a maior parte de sua vida no Brasil –era muito novo quando deixou seu país de origem –, o que o faz assimilar alguns traços da cultura local, embora as tradições judaicas imperem em sua formação. Samuel é casado com Shendl e tem dois filhos: Joel e Nathan. A família é pobre; vive modestamente com o dinheiro produto das “andanças” de Samuel que, “mascate”, vendia a prestação para uma clientela nem sempre muito receptiva.

No Bom Fim as famílias judias eram muito próximas. No entanto, o bairro não era uma comunidade unicamente judaica; nele havia uma gama de imigrantes de várias origens. Conviviam ainda com os moradores da Colônia Africana e do Morro da Velha. A narrativa apresenta um paralelo entre as comunidades judaica e africana, por, em um primeiro momento, serem vítimas de problemas comuns – como o estigma da perseguição a que estavam submetidos historicamente e o dilema social da pobreza.

Joel e o frágil Nathan são os primeiros integrantes da família a nascer no Brasil; eles não conheciam outra realidade que não a do Bom Fim. Joel é o mais desembaraçado dos dois, anda pelo bairro com desenvoltura: “no Bom Fim, Joel sentia-se como um Rei” (1972, p. 17). Os garotos dormiam na mesma cama. Joel era baixo, ruivo e sardento; Nathan, pálido e magro, nunca dormia. Nathan era um garoto sensível, tocava violino como o avô Leão – de “ouvido”. Para o irmão, Nathan era todo melodia: “Encostava a orelha no crânio do outro, e ouvia sons, notas fugazes” (1972, p. 10).
Joel era o líder do grupo de meninos composto por Beto, Dudi, Mario Finkelstein (filho do Dr. Finkelstein), Francisco Zukierkorn, os irmãos Abrão e Moisés, Rubens, Motl Liberman, Pedro, Arnaldo, Favinho (Fábio Blumenfeld), Rafael, Miguel (o manco), Rute, Raquel, Nathan e Marcos. Eles se distinguem entre si: “Nathan voava. Marcos deitava no chão e ficava quieto. Rafael estava sempre rabiscando em papel de pão. Alberto dava o cu. Dudi era filho do professor de hebraico. Rute era quase homem, fumava. Raquel era meiga e tinha um álbum de recordações (…). Miguel, o manco, fazia contas de cabeça” (1972, p. 19).

Todos estudam no colégio Iídiche. “Todo mundo menos Marcos” (1972, p. 15). Marcos é um “fora do lugar”: não fazia parte da escola Iídiche porque seus pais tinham uma boa situação financeira e eram amigos de pessoas influentes; em função disso colocam o filho em uma escola que julgavam ensinar “o que era necessário para vencer na vida” (1972, p.15). Porém, Marcos também não pertencia a este universo, “era o único judeu” da escola, provavelmente de imigrantes alemães – no contexto da segunda guerra.

Marcos simboliza a crise de identidade, crise por que passará também Joel – porém só quando jovem, depois de abandonar e ultrapassar as fronteiras do Bom Fim. Para Marcos, essa crise é tão violenta, que o menino não suporta a pressão: suicida-se. A situação financeira de sua família o impede de fazer parte da comunidade judaica do Bom Fim, em que grande parte dos integrantes vivia na pobreza, e sua condição étnica o impede de fazer parte da escola em que estuda, de maioria alemã.

A redenção de Marcos é o rompimento de sua existência, por meio da morte. A simbologia kafkiana da metamorfose ganha outra dimensão no texto de Scliar: aqui a barata representa uma imagem positiva, é sinônimo de liberdade, não de aprisionamento e repressão. Como barata, Marcos não é esmagado e varrido, mas voa sobre o Bom Fim, olhando divertido o próprio velório.
Rosa, assim como Marcos, também sofre em função da sua identidade, contudo, para mantê-la. Rosa traz no corpo o estigma da diferença: a vagina dentada. Por este motivo, é marginalizada dentro e fora da cultura judaica, sendo expulsa de casa por se recusar a eliminar de si o que a diferencia: “não podia renunciar a seus dentes, eram parte dela para o bem e para o mal” (1972, p. 37).

Ela é caracterizada como uma garota que “cresceu cheia de ódio, não de amor. Era mal-humorada e tinha ataque de nervos. Olhava para os homens de maneira estranha” (1972, p. 36). Sendo assim, personifica a mulher histérica e o medo masculino da castração diante da sexualidade feminina ameaçadora – o homem em presença de sua vagina dentada, mesmo exercendo sobre ela a força, o abuso, acaba lesado. A jovem, ainda assim, jamais deixou de pertencer à comunidade – “mesmo morando entre prostitutas, mesmo entregando-se a perversões, mesmo louvando os nazistas” (1972, p. 38). Entretanto, Rosa acaba por render-se, abrandando sua fúria sexual ao ceder e entregar-se como esposa devota ao homem que quebra tais dentes “malignos”.

A guerra, de outro lado, entra no cenário do romance por meio do imaginário de Joel, o qual é suscitado por filmes “que eram sempre de guerra”, pelas conversas em frente ao bar Serafim e pelos “noticiosos” que os pais ouviam “em grandes rádios de válvula” (1972, p. 42). Todos os acontecimentos eram convertidos à guerra pela imaginação do garoto, como a morte de seu avô, o sumiço do cão Melâmpio, o afastamento de Rosa, entre outros incidentes.

A imaginação infantil, dentro desse contexto, é um dos elementos fundamentais na obra de Scliar, e através dela Joel sublima os seus conflitos internos (quando criança) e depois desenvolve sua personalidade. Sendo assim, a formação dos meninos do Bom Fim é demasiadamente afetada pela Segunda Guerra, mas também eles são marcados pela incumbência de dar continuidade à tradição e elevar-se na vida, o que gera o dilema identitário: ter de conviver com a cultura local, sem perder a noção da particularidade judaica. A geração de Joel passa a descobrir-se entre as diferenças e os embates culturais – o que é assinalado nas guerras de “brincadeira” entre o grupo de Joel e os meninos da Colônia Africana. Entretanto, os câmbios culturais – a aculturação – são inevitáveis, e isto é simbolizado pela troca de alimentos entre Nathan e o negrão Macumba e depois pela morte de Samuel – devorado por Maria.

Ao passo que as crianças crescem e destacam-se em suas vidas, a comunidade judaica – tão unida na infância de Joel – se dispersa, as famílias acabam deixando o Bom Fim para morar em outros bairros, e o próprio Bom Fim se moderniza. A família de Joel também se desfaz. Nathan morre ainda garoto, Shendl perde a lucidez e é internada em um manicômio, Malke Tube e Samuel morrem, este último como churrasco de alemães.

Com a morte de Samuel – último representante da família nascido fora do Brasil e mantenedor das tradições hebraicas –, grande parte da cultura judaica é deixada de lado por Joel. Desta forma, os costumes sui generis da primeira geração de emigrantes – Leão e Pessl – acabam transformados pela convivência inevitável entre pessoas de origens distintas, pelo tempo e pela assimilação aos hábitos locais.

A tradição, portanto, não se mantém intacta para os descendentes de Leão e Pessl e o paladino deste legado, Samuel, tem de morrer (mesmo que simbolicamente) para que o filho possa continuar sua trajetória e, assim, encontrar uma identidade no emaranhado entre o ser judeu e o ser brasileiro. O que se configura quando Joel, concomitante à morte do pai, envolve-se com uma goim, com uma moça não judia.

No momento em que Samuel morre, Joel sai e tem relações sexuais com Mali – filha de Soares de Castro, antigo dono de Malke Tube e de quem o animal nunca se desvinculou. O nome da garota seria uma homenagem do pai à antiga égua, Maliciosa, a qual, igualmente, Soares de Castro nunca esqueceu. Simbolicamente Malke Tube – a promessa de um futuro promissor – jamais pertenceu à família de Joel, no entanto, é apenas com a morte de Samuel e com a posse física de Mali – a personificação da égua – que o futuro promissor parece se abrir para Joel.

Depois de passar por diversas peregrinações em busca de encontrar-se como sujeito, Joel redescobre-se em seu país. A infância, o pai, o irmão e a comunidade protetora ficam para trás, mas os laços com suas raízes repercutem no percurso do homem que, mesmo depois de cruzar o mundo em busca de reconhecer a si e ao outro, encontra-se no lugar a que sempre pertenceu: o seu Bom Fim.

Referências:
ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo: totalitarismo, o paroxismo do poder. Rio de Janeiro: Documentário, 1979. Extraído de:http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_arendt_origens_totalitarismo.pdf. Acesso em: maio de 2018.

SCLIAR, Moacyr. A guerra no Bom Fim; novela. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1972.

 

CHRISTINI ROMAN DE LIMA
Bacharel em Comunicação Social, Jornalismo, pela Universidade de Passo Fundo, especialista em Literatura Brasileira e Mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Doutoranda em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)