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25 de abril de 2018
Redescobrindo Scliar | Luís Augusto Fischer relembra “A Majestade do Xingu”

Luís Augusto Fischer | Foto: Cíntia Warmling

Lançada em 1997, “A Majestade do Xingu” é a obra que o escritor e professor gaúcho Luís Augusto Fischer comenta em sua participação para a série “Redescobrindo Scliar”. Para Fischer, a força do romance está em um protagonista “atormentado pelas fantasias e responsabilidades que pesam sobre um judeu, sobre um imigrante, sobre um fracassado, cuja história inventada nos encanta e nos entristece, como é próprio da grande arte”. Boa leitura!

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“Publicado em 1997, A majestade do Xingu se passa na capital paulista, onde o protagonista desenrola sua medíocre vida, contrastada, em suas lembranças, com a marcante trajetória de seu conterrâneo e êmulo Noel Nutels.

O livro foi muito lido, na época de seu lançamento, como sendo uma biografia romanceada de Noel Nutels, médico já mitológico da vida brasileira, um dos mais destacados homens de inteligência letrada que se dedicaram aos índios brasileiros. Certo, há ali toda uma reconstrução da vida de Noel; mas o romance não é sobre Noel Nutels, mas sobre o narrador, que é personagem e toma a palavra para relatar sua vida.

Ele é um sujeito numa cama de hospital, com seus 60 e tantos anos; um solitário, abandonado pela esposa (que migrou para Israel depois de haver constatado o fracasso do casamento dos dois e depois de haver educado o único filho dos dois) e pelo filho, emigrado para a França, fugindo da ditadura militar brasileira, e lá aclimatado. É um imigrante judeu russo, que chegou ao Brasil após fugir, com a família, dos horrores que se seguiram à instalação da ditadura soviética.

Internado em hospital, ele fala sem parar para um médico que o atende, desfiando suas memórias. Faz a contabilidade de sua miserável vida: comerciante de uma lojinha medíocre no bairro paulistano do Bom Retiro, ironicamente chamada A majestade, passou a vida na sombra, lendo em vez de trabalhar na loja, e sem ter cumprido com a promessa que fizera ao pai de estudar para ser médico e assim fazer-se na vida. Resultou que apenas herdou a loja de outro judeu, que se afeiçoara a ele.

Walter Benjamin já havia detectado com precisão a força das narrativas feitas por alguém que está cara a cara com a morte. Só nesta hora, disse, a voz narrativa adquire todas as condições para dizer a verdade fulminante e dura, que advém do supremo instante da vida, a véspera da morte. Precisamente aí está o centro do acerto de Scliar, neste romance. A vida e a obra de Noel sempre o fascinaram, mas ele não encontrava meios de contar a história com a contundência necessária. Agora descobriu: pôs em cena um narrador à beira da morte, que imigrou com Noel da Rússia, no mesmo navio. Para seu desconsolo, mal chegados ao Brasil, Noel seguiu seu destino, no Nordeste brasileiro, ao passo que o narrador, por decisão do pai, se dirigiu a São Paulo, onde a fortuna aparentemente os aguardava.

O narrador passa toda a sua irrelevante vida acompanhado pela lembrança e pela sombra de seu amigo Noel, a quem jamais reencontrou em vida: Noel famoso, amigo de gente importante, autor de seu destino; o narrador um medíocre, sempre atrás do balcão, lendo à toa, amigo de ninguém, vítima de seu destino. Noel foi um homem, comprando as brigas que cabia comprar para agir sobre o mundo; o narrador foi um arremedo de homem, vivendo sua existência secundária, subordinada, medrosa.

E aí está a força do romance, precisamente na vida deste pobre ser, atormentado pelas fantasias e responsabilidades que pesam sobre um judeu, sobre um imigrante, sobre um fracassado, cuja história inventada nos encanta e nos entristece, como é próprio da grande arte”.

LUÍS AUGUSTO FISCHER