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19 de junho de 2018
Redescobrindo Scliar | Moacyr Scliar também era cirurgião… das palavras

Embora médico, Moacyr Scliar não atuava como cirurgião, o que nunca impediu que o doutorando em Escrita Criativa pela PUCRS, Daniel Gruber, considerasse o escritor como tal. “O Scliar escritor era, sem dúvida, cirúrgico na sua composição: revisava e alterava seus textos com a precisão, a paciência e a sagacidade exigidas a um escritor com senso de responsabilidade por seu trabalho”. É a partir dessa perspectiva que o Daniel nos conta as suas percepções sobre a obra literária de Moacyr na nossa série Redescobrindo Scliar. Boa leitura!

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Moacyr Scliar também era cirurgião… das palavras

Até então, Moacyr Scliar era para mim um escritor cheio de inventividade e intuição, um contador de histórias no seu sentido mais clássico. Características que estavam naturalmente ligadas ao seu jeito franco e tranquilo, repleto de sensibilidade e generosidade.

Foram essas as impressões que tive na única vez que conversei com ele, enquanto eu ainda era um jovem repórter fazendo a cobertura da feira do livro de Novo Hamburgo.  “Eu venho sempre que me convidam”, disse ele, se preparando para falar a uma turma de escola, “porque a crianças percebem que o escritor é uma pessoa igual a elas, e isso faz com que gostem mais de ler.”

E ele estava certo.

Mas conhecer a intimidade da sua escrita foi ainda mais revelador. O contato com seus manuscritos arquivados no acervo do Delfos (Espaço de Documentação e Memória Cultural), da PUCRS, me levou a conhecer o Scliar cirúrgico. Não no sentido médico, mas literário. Embora renegasse – por modéstia – o título de escritor profissional, ficou claro para mim, ao folhear seus manuscritos, que era um artista e um profissional que juntava inspiração e dever no seu ofício. Um escritor com intensa responsabilidade perante à palavra e à narrativa.

Encontrei um Scliar que não deixava as ideias escaparem da cabeça, e as anotava em qualquer papelzinho que estivesse à mão, fosse o verso de seus prontuários médicos, recibos de compras, guardanapos, o que fosse. E depois se desdobrasse sobre essas ideias, como se tivesse imposto uma missão a si mesmo – a de levar o encanto das histórias à alma dos leitores.

Embora o Scliar médico não atuasse como cirurgião, o Scliar escritor era sem dúvida cirúrgico na sua composição: revisava e alterava seus textos com a precisão, a paciência e a sagacidade exigidas a um escritor com senso de responsabilidade por seu trabalho. Em suas versões datilografadas, acrescentavas trechos à mão, cortava palavras desnecessárias ou em excesso, mudava parágrafos de lugar. Depois passava a limpo, para ver o texto emergir em sua versão final ou quase final. Sua preocupação com o que escrevia não era superficial, sua criação não era puramente intuitiva como o resultado nos faz crer, mas repleto de movimentos cerebrais, típicos de um intelectual de seu patamar.

Isso certamente evidencia uma preocupação e um respeito com o leitor. Mas também revela um autor preocupado com a essencialidade do texto: não lhe interessava os floreios e as erudições típicas de escritores inseguros ou envaidecidos, mas a essencialidade da história ou da ideia que queria transmitir.

Era essa a missão que impunha para si como escritor. E a nós, leitores, cabe a gratidão por seus gestos.

DANIEL GRUBER
Doutorando em Escrita Criativa pela PUCRS