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22 de março de 2018
Redescobrindo Scliar | David Coimbra comenta conto de “O Carnaval dos Animais”

David Coimbra | Crédito: Reprodução

Mais uma vez vamos redescobrir a obra de Moacyr Scliar através das palavras de um colega escritor. Dando sequência a essa celebração inaugurada por Cíntia Moscovich com “Entre o shtetl e o gulag”, chegamos agora às impressões de David Coimbra sobre “A Vaca”, conto que integra o livro “O Carnaval dos Animais”, lançado originalmente em 1968. Antes de conferir, abaixo, as impressões e as memórias de Coimbra a respeito do texto, não deixe, claro, de relembrar o conto original (para acessá-lo, clique aqui). Boa leitura!

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“Não lembro onde estava quando li pela primeira vez o conto da vaca Carola. Só lembro que era guri. Talvez fosse na escola ou foi minha mãe quem me alcançou algum livro, sei lá. Sei que fiquei encantado.

Naquele momento da vida, eu praticamente ainda criança, o que me enfeitiçou foi a imaginação de Moacyr Scliar. Um náufrago é salvo por uma vaca chamada Carola, levado em seu lombo para a segurança de uma ilha deserta e, lá, ela o serve de todas as maneiras, até a morte. Aquela experiência marca a vida do marinheiro de tal forma que ele não consegue mais esquecer a vaca, só pensa na vaca que se sacrificou para que ele continuasse vivo. Mas, no final da história, quando ele está sozinho no tombadilho de um grande navio de cruzeiro, rico e triste, olhando com nostalgia para o horizonte no fim do mar, surge-lhe uma loira de seios opulentos e olhos castanhos, que lhe diz:

– Alô. Meu nome é Carola.

É impossível um menino não ficar especulando, depois de ler essa história. Bichos, marinheiros e mares são coisas de meninos. Para mim, aquela era uma história de pura fantasia.

Mais tarde, já na faculdade, encontrei outra vez a doce Carola e seu verdugo-amante humano. Uma professora interpretou em aula o conto como um libelo contra o capitalismo. Carola seria o povo explorado e o marinheiro o empresário explorador. Era, praticamente, um manifesto comunista.

Fiquei em dúvida. Reli “A Vaca”. Encantei-me de novo, desta vez com a técnica precisa de Scliar. Em nenhum momento a história descaía para a pieguice e, embora fosse um conto de gênero fantástico, jamais houve exageros. Scliar equilibrou-se com segurança na narrativa, até alcançar o desfecho impactante.

O que Scliar pretendia com aquilo pouco me importou. Importou-me, realmente, o poder da história.

Alguns anos depois, trabalhando como jornalista, conheci Scliar na redação de Zero Hora. Cada vez que ele entrava no jornal, parava em frente ao meu terminal de computador, conversava sobre algum assunto do dia e não saía sem antes recomendar:

– Um romance! Tu tens que escrever um romance!

Um dia, avisei que estava escrevendo o tal romance. “Canibais”, o título. Ele se entusiasmou e, generosamente, disse que queria ler os originais. Quando terminei o livro, entreguei-o ao Scliar. Ele leu, se empolgou, elogiou e escreveu a apresentação.

Obviamente, fiquei envaidecido e, então, tomei coragem para fazer uma pergunta que, em geral, aborrece muitos autores: o que ele queria dizer com “A Vaca”? Tratava-se, de fato, de uma peça anticapitalista, como interpretavam universitários? Ou uma bela fantasia que tinha intenção de enlevar, como sentiam os meninos? Ele sorriu enigmaticamente. E deu uma resposta tão perfeita quanto seu conto:

– Cada um tira da história o que quiser.

E foi assim que foi: muito tirei das histórias tantas de Moacyr Scliar”.

DAVID COIMBRA