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28 de março de 2018
Redescobrindo Scliar | Tulio Milman relembra “Um Seder para os nossos dias”

Túlio Milman | Crédito: Reprodução

Seder é o jantar de celebração do Pessach, a Páscoa judaica, que começa a ser celebrada ao pôr-do-sol dessa sexta-feira, 30 de março, e termina ao anoitecer de sábado, 7 de abril.

Em comemoração a esse período festivo, o jornalista Tulio Milman participa da nossa série “Redescobrindo Scliar”, onde colegas, jornalistas e escritores são convidados a comentar os escritos de Moacyr Scliar que merecem ser reapreciados e redescobertos pelo grande público.

Para Tulio, que agora se junta ao time de convidados já formado por Cíntia Moscovich e David Coimbra, a obra de Moacyr Scliar simboliza, entre tantas outras coisas, a universalidade de valores e princípios do judaísmo. E é a partir dessa perspectiva que ele comenta o texto “Um Seder para os nossos dias”, lançado originalmente por Scliar na década de 1980.

Boa leitura!

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“Por que esse livro é diferente dos outros livros?

Moacyr Scliar não era religioso, mas lia a Bíblia e dialogava com a fé. Essa é a primeira grande inspiração que transborda de “Um Seder para os nossos dias”, 24 páginas, publicado em 1987 e ausente da maioria das listas de obras do autor.

Seder é o jantar de celebração do Pessach, a Páscoa judaica. Uma vez por ano, as famílias se reúnem para relembrar a história de uma travessia fantástica: a da escravidão no Egito à liberdade.

A Hagadah, livro central do Pessach, serviu de inspiração para Scliar, que se debruça sobre a tirania, a trajetória de Moisés, as 10 pragas e os 40 anos no deserto, tempo necessário para que nascesse e crescesse uma geração de homens e mulheres livres e, por isso, aptos a entrar na Terra Prometida.

Consegui um exemplar amarelado, da Editora Shalom. As ilustrações de Carlos Scliar, primo de Moacyr, surgem na medida certa e com a leveza fundamental, sem jamais competir com o texto.

A impressão é a de que Um Seder para nossos dias poderia ter sido escrito em 2018. Um trecho: “O deserto que hoje temos de atravessar não é uma extensão de areia estéril, calcinada pelo sol implacável. É o deserto da desconfiança, da hostilidade, da alienação de seres humanos”.

Scliar não conspurca a perenidade sagrada da Hagadah, mas dá a ela uma outra dimensão universal, a do olhar sobre as injustiças, o preconceito e a xenofobia. E evoca as palavras de Deus ao fechar o Mar Vermelho sobre o exército do faraó. Livres da morte, os hebreus entoaram um hino de louvor ao seu Senhor. “Não cantareis enquanto meus outros filhos se afogam”. É linda essa passagem, quando hoje tanta gente confunde Justiça com vingança.

Conta uma antiga lenda que havia, em um shtetl, pequena aldeia judaica da Europa Oriental, um ateu. Shmuel não li os livros sagrados, não rezava e não frequentava a sinagoga. Na época, ser religioso era uma regra praticamente sem margem para exceções.

Um dia, Shmuel descobriu que numa aldeia distante havia um outro ateu. Viajou dois dias para conhecê-lo. Ao chegar ao local indicado, bateu na porta. Um homem velho e curvado veio abri-la. Ao fundo, Shmuel viu uma enorme biblioteca e uma mesa coberta com livros de oração. “Eu sou ateu e me disseram que aqui mora outro ateu, mas deve ter sido engano”, disse Shmuel.

O dono da casa abriu um sorriso e os braços. “Você também é ateu? Entre e vamos debater sobre isso. Você certamente, assim como eu, deve ter estudado muito sobre o tema”.

Scliar e sua obra simbolizam, entre tantas outras coisas, a universalidade de valores e princípios do judaísmo. Sem jamais se fechar, sem jamais esquecer que a liberdade é um caminho e que, sozinho, é impossível percorrê-lo”.

TÚLIO MILMAN