Redescobrindo Scliar | David Coimbra comenta conto de “O Carnaval dos Animais”

Mais uma vez vamos redescobrir a obra de Moacyr Scliar através das palavras de um colega escritor. Dando sequência a essa celebração inaugurada por Cíntia Moscovich com “Entre o shtetl e o gulag”, chegamos agora às impressões de David Coimbra sobre “A Vaca”, conto que integra o livro “O Carnaval dos Animais”, lançado originalmente em 1968. Antes de conferir, abaixo, as impressões e as memórias de Coimbra a respeito do texto, não deixe, claro, de relembrar o conto original (para acessá-lo, clique aqui). Boa leitura! •••••••••••• “Não lembro onde estava quando li pela primeira vez o conto da vaca Carola. Só lembro que era guri. Talvez fosse na escola ou foi minha mãe quem me alcançou algum livro, sei lá. Sei que fiquei encantado. Naquele momento da vida, eu praticamente ainda criança, o que me enfeitiçou foi a imaginação de Moacyr Scliar. Um náufrago é salvo por uma vaca chamada Carola, levado em seu lombo para a segurança de uma ilha deserta e, lá, ela o serve de todas as maneiras, até a morte. Aquela experiência marca a vida do marinheiro de tal forma que ele não consegue mais esquecer a vaca, só pensa na vaca que se sacrificou para que ele continuasse vivo. Mas, no final da história, quando ele está sozinho no tombadilho de um grande navio de cruzeiro, rico e triste, olhando com nostalgia para o horizonte no fim do mar, surge-lhe uma loira de seios opulentos e olhos castanhos, que lhe diz: – Alô. Meu nome é Carola. É impossível um menino não ficar especulando, depois de ler essa história. Bichos, marinheiros e mares são coisas de meninos. Para mim, aquela era uma história de pura fantasia. Mais tarde, já na faculdade, encontrei outra vez a doce Carola e seu verdugo-amante humano. Uma professora interpretou em aula o conto como um libelo contra o capitalismo. Carola seria o povo explorado e o marinheiro o empresário explorador. Era, praticamente, um manifesto comunista. Fiquei em dúvida. Reli “A Vaca”. Encantei-me de novo, desta vez com a técnica precisa de Scliar. Em nenhum momento a história descaía para a pieguice e, embora fosse um conto de gênero fantástico, jamais houve exageros. Scliar equilibrou-se com segurança na narrativa, até alcançar o desfecho impactante. O que Scliar pretendia com aquilo pouco me importou. Importou-me, realmente, o poder da história. Alguns anos depois, trabalhando como jornalista, conheci Scliar na redação de Zero Hora. Cada vez que ele entrava no jornal, parava em frente ao meu terminal de computador, conversava sobre algum assunto do dia e não saía sem antes recomendar: – Um romance! Tu tens que escrever um romance! Um dia, avisei que estava escrevendo o tal romance. “Canibais”, o título. Ele se entusiasmou e, generosamente, disse que queria ler os originais. Quando terminei o livro, entreguei-o ao Scliar. Ele leu, se empolgou, elogiou e escreveu a apresentação. Obviamente, fiquei envaidecido e, então, tomei coragem para fazer uma pergunta que, em geral, aborrece muitos autores: o que ele queria dizer com “A Vaca”? Tratava-se, de fato, de uma peça anticapitalista, como interpretavam universitários? Ou uma bela fantasia que tinha intenção de enlevar, como sentiam os meninos? Ele sorriu enigmaticamente. E deu uma resposta tão perfeita quanto seu conto: – Cada um tira da história o que quiser. E foi assim que foi: muito tirei das histórias tantas de Moacyr Scliar”. DAVID COIMBRA
Redescobrindo Scliar | Cíntia Moscovich analisa “Entre o shtetl e o gulag”

São inúmeros os célebres trabalhos de Moacyr Scliar que se tornaram queridos junto ao público e à crítica. Há também, entre tantos romances, contos e crônicas de sucesso, trabalhos que, ainda hoje, podem ser descobertos. E é com a proposta de garimpar esses escritos que ficaram em menor evidência na carreira do escritor que convidamos amigos e colegas de Moacyr Scliar para comentar textos que mostram o quanto a sua obra pode ser sempre reapreciada. Para começar, confira a análise da escritora Cíntia Moscovich para “Entre o shtetl e o gulag: vozes do judaísmo russo”, texto publicado originalmente por Moacyr Scliar na revista Shalon. •••••••••••• Em “Entre o shtetl e o gulag: vozes do judaísmo russo”, texto inicialmente publicado na revista Shalom, editada por Patricia Finzi, com ricas ilustrações de Ester Gurevich, Moacyr Scliar faz um rico recorrido histórico, lançando uma luz ao mesmo tempo esclarecedora e apaixonada sobre as adversidades impostas ao povo judeu na Europa, de maneira geral, e na Rússia, de maneira específica. Desde a dispersão ao tempo da conquista assíria em 722 a.C., perpetuando-se sob o domínio grego e romano e tornando-se regra na Europa Medieval, os judeus vagaram, orientados exclusivamente pelas mesmas forças que orientam os fluxos migratórios, a melhoria nas condições de vida. Como agravante, havia também a necessidade de manter identidade do grupo e do povo, característica que nem sempre, ou quase nunca, seria bem-vinda. Scliar é um autor sensorial. Aqui, nesse texto, tudo se inicia com uma imagem. Ao olhar uma foto de sua mãe e nela perceber os malares fortes e angulosos, se dá conta que aquele é o rosto de uma camponesa russa. A lógica que precede aquelas feições é curiosa, e Scliar arrisca um palpite: comprimidos entre os cristãos, ao norte, e o Islã, força crescente, ao sul, os khazares, povo seminômade de origem turca, estão assentados em território russo e teriam visto no judaísmo uma forma de manter a independência e a neutralidade. Convertidos, o expediente durou bem por dois séculos: em 970 d.C. um exército russo destruiu o reino da Khazaria — mas não o legado do judaísmo pelos khazares cultivado. Adiante no tempo, Scliar passa pela Revolução Francesa e pela Assembléia Nacional que estruturou o ideário da nova ordem e sua relação com indivíduos e com nações. Expulsos da Península Ibérica, da França, da Alemanha, os judeus rumam para Leste: buscam o Império Russo, que se expande para Oeste. Comerciantes experientes, falantes de várias línguas, os judeus conseguem rica vida espiritual ao mesmo tempo em que se iniciam as perseguições: os pogroms Em 1708, Pedro, o Grande, permite que os judeus se estabeleçam em Petersburgo, embora sem ser acolhidos. É o início do núcleo da da existência material e espiritual do povo: o shtetl. Na sequência, Scliar conta da vinda para o Rio Grande do Sul, citando o o escritor Marcos Iolovitch em “Numa clara manhã de abril”. E lembra de Isaac Babel, que se alistou na Cavalaria Vermelha, fato que resultou em relatos impressionantes. Depois, já na década de 1920, os bolcheviques começaram a encorajar os judeus a se dedicarem a terra, em colônias judaicas na Criméia, em Kherson e no Birobdjan, esforço que falhou fragorosamente. Quando da invasão alemã à Rússia na 2a Guerra, embora o morticínio tenha sido grande, Moacyr comenta que a resistência judaica foi corajosa. Após a criação do Estado de Israel, estabeleceu-se a grande perseguição a todos quanto solicitavam visto, fato que resultava em cenas de nonsense e que chegou a originar muitos movimentos mundo afora. Assim, desde tempos remotos, passando por Sholem Aleichem, indo de Chagall a Isaac Babel, dos partisans judeus à acolhida no mundo novo, o texto de Scliar torna-se, desde já, importante material de pesquisa. CÍNTIA MOSCOVICH