Discurso proferido pelo orador da turma, doutorando Moacyr Jaime Scliar, na solenidade de formatura, em 23 de Dezembro de 1962, na Faculdade de Medicina da Universidade do R. G. do Sul.
Há um dia para começar; há um dia para terminar.
Há um dia para subir as escadarias da Faculdade pela primeira vez; e vem o dia para descê-las pela última vez.
Há um dia para ser estudante talvez despreocupado; mas há um dia para ser médico certamente responsável.
Muitos dias passaram velozmente, em alegre torvelinho, na esfuziante renovação da juventude, nas descobertas de cada minuto, na efervescência de sentimentos. Muitos dias passaram, assim, e eis que chega o instante derradeiro. É tempo de parar um pouco, no meio desta jornada; é tempo de refletir e reavaliar os valores. Mas sobretudo, é este um dia de recordação.
Neste dia, cada um dos cento e três doutorandos aqui presentes, volta-se para o passado, antes de encarar o futuro. E então, muitas histórias poderiam ser contadas; alegres umas, tristes outras, mas de qualquer modo histórias que vale a pena recordar.
Eu tentarei aqui, contar uma delas; de quem, não importa. Se houver qualquer semelhança com a realidade, ela se deve, não a uma simples coincidência, mas ao caminho comum que uniu a todos nós, médicos em formação.
Há alguns anos atrás, uma criança nasceu, num grande continente, chamado América Latina, do qual escreveu Ferreira Gullar:
“Morrem quatro por minuto
nesta América Latina
Não conto os que morrem velhos,
só os que a fome extermina.
Não conto os que morrem velhos
que, na América Latina,
esses são poucos; os homens
aqui mal passam dos trinta.
Não conto os mortos de faca
nem os mortos de polícia;
conto os que morrem de febre
e os que morrem de tísica.
Conto os que morrem de bouba
de tifo, de verminose:
conto os que morrem de crupe
de cancro e schistosomose.
Mas todos esses defuntos,
morrem de fato é de fome,
quer a chamemos de febre
ou de qualquer outro nome.
Morrem de fome e miséria
quatro homens por minuto
embora enriqueçam outros
que deles não sabem muito.”
Um mau lugar este, para se receber o primeiro sopro de vida. Pois a vida, neste grande continente, é algo muito problemático para as crianças. A parteira que assistiu ao nascimento poderia ser uma das tantas chamadas curiosas, a quem compete trazer ao mundo os cidadãos de um país deste continente – um colosso chamado Brasil. Na tesoura com que a parteira corta o cordão umbilical, espreita o germe do tétano. Nos olhinhos do brasileiro, não desinfetados, o gonococo pulula. Assim sendo, para nascer, os brasileiros precisam fazer uma força tremenda – só comparável à força que precisam fazer para sobreviver.
Suponhamos, porém, que a criança escapou, ao nascimento. Suponhamos; porque, caso contrário, não teremos história. E a história desta criança precisa ser contada. É a odisseia de um ser fraco e indefeso, que precisa lutar a cada instante por uma migalha de vida.
É uma batalha que exige astúcia e resistência. Astúcia para não nascerem lugares como a Casa Amarela, no Recife, onde de cada mil crianças que nascem morrem quinhentas. Astúcia para não nascer na Amazônia, onde desaparecem oitocentas de cada mil crianças com menos de uma no. Astúcia para não nascer em Breves, no Pará, onde até bem pouco não existia nenhuma criança. Sim, as crianças brasileiras precisam ser astuciosas.
E precisam ser resistentes também. No Brasil, morre uma criança a cada 42 segundos, 85 crianças por hora, 2040 por dia. A cada volta do ponteiro, a criança treme: sua vez poderá ter chegado. O R. G. do Sul perde dez mil crianças por ano – a população de uma cidade. É preciso ser forte, para escapar à matança. 20% das crianças que nascem no Brasil estão mortas antes de um ano de idade. É uma árdua tarefa, ser criança no Brasil.
Continuemos, porém, nossa história, supondo que a criança sobreviveu e chegou à idade escolar. “Idade escolar” é uma expressão um tanto irônica: mesmo que haja idade, faltam as escolas. Dos oito milhões de brasileiros que estão nesta fase, quatro milhões não tem escola. E é duro, ser analfabeto numa democracia – nem o direito de voto lhe é assegurado. A população brasileira, entre 11 e 18 anos, é de quatorze milhões, dos quais, apenas a décima-quarta parte tem escola.
Mas seguindo nosso roteiro, o menino chegou ao ginásio e ao científico, onde aprendeu várias coisas: como passar nos exames, como adquirir cultura livresca. Como fugir da prática e mergulhar na teoria.
E por fim, vem bater às portas da Universidade. Mais precisamente, da Faculdade de Medicina. Com ele vieram quatorze mil outros jovens. De todo o país.
Quatorze mil jovens ouviram dizer que no Brasil existe apenas um médico para cada 2500 habitantes, que no Maranhão esta cifra chega a ser de 1 facultativo para cada 85000 habitantes; que 900 municípios brasileiros não dispõem de médico. E – bem ou mal – queriam dedicar-se à medicina. Pois bem: para estes quatorze mil futuros médicos, há mil e oitocentas vagas. Ao lado de cada vestibulando, sete outros disputam uma vaga. A luta pela vida, que começa para o brasileiro quando ele nasce, prossegue quando cresce entra na escola, termina o colégio, continua ainda quando ele pretende servir à coletividade.
Naturalmente, ele submeteu-se ao exame. Como todos. Não um exame para selecionar capacidades vocacionais, não uma análise minuciosa do indivíduo que vai ter vidas nas mãos. Não; os critérios foram outros. Quem fez cursinho pré-vestibular, pode passar. Para quem trabalha de dia, e estuda à noite, já e mais difícil. Quem fez escola particular, com professores bem remunerados, tem chances. Quem cursou a escola pública, onde o magistério percebe parcos vencimentos e esgota-se em aulas sucessivas, tem menos chances. E assim, doze mil e duzentos jovens, em cada ano, deixam de ser médicos. Seu lugar é imediatamente preenchido por curandeiros, benzedores e charlatães. Para estes, não há exame vestibular.
Como vemos, nossa história poderia terminar aqui. Mas na verdade, ela apenas começa. Um novo estudante de medicina soe as escadarias da Faculdade, cheio de orgulho, cheio de ideais e esperanças.
No primeiro ano, apresentam-lhe cadáveres. Pulmões de um tuberculoso, não importa, são apenas pulmões. Coração de um sifilítico, não importa: é apenas um coração. Ossos deformados de uma criança raquítica, não importa: são apenas ossos. É preciso aprender anatomia, e ele aprende. E também química, fisiologia e patologia.
Depois, o nosso estudante chega à Santa Casa, repositório da doença de um estado inteiro. E então, o jovem acadêmico começa a ter inquietudes. Há o quadro clínico da verminose, mas por que há verminose? Há o quadro clínico da desnutrição, mas por que há desnutrição? Há o quadro clínico das doenças contagiosas, mas por que há contágio? Existe tuberculose, mas por que existe tuberculose? Por quê?
Perguntas, apenas perguntas. Perguntas ociosas, dirão, para quem tem tanto que aprender. Os manuais europeus e norte-americanos aí estão com novas e aperfeiçoadas técnicas, com o estudo minucioso das doenças da civilização. O estudante de medicina ia dos tratados estrangeiros aos doentes nacionais, apenas para descobrir que há entre ciência e o sub-desenvolvimento uma impenetrável barreira, que os medicamentos poderosos não atravessam, que as modernas técnicas de diagnóstico não atravessam, que as conquistas da medicina não atravessam. E o estudante ficou só; só com suas dúvidas.
Mas havia os professores. E então começaram a surgir as primeiras alegrias. Porque, se é verdade que havia catedráticos entronizados “per secula seculorum” em pedestais construídos sobre glórias remotas, também é verdade que havia instrutores, assistentes, docentes, professores, jovens uns, maduros outros, mas mestres que conservavam em sua alma a chama da juventude, que tinham também suas dúvidas e suas angústias. Com estes mestres, verdadeiros sargentos de um exército tão heterogêneo, o estudante cimentou uma sólida e profunda amizade, estribada em um profundo respeito pela ciência, por estes lutadores anônimos que verdadeiramente lhe ensinaram a medicina. Não havia tempo para agradecimentos e elogios; mas ele tomou uma resolução, uma entre muitas: levar os mestres à mesa dos homenageados em sua formatura. Mestres, por seu conhecimento; mestres por seu humanismo; mestres que viam no doente, não apenas um sopro cardíaco, não apenas uma dosagem bioquímica, mas sim um ser humano sofredor, torturados por problemas emocionais e sociais. Lentamente, o estudante começou a compreender. Percebeu que sua passividade era um calcanhar de Aquiles, por onde penetrariam as setas da indiferença e do comodismo. Percebeu que, sendo uma pequena peça numa completa engrenagem, era no entanto, uma peça vital. Percebeu que o bisturi em sua mão era arma poderosa; que as palavras que dizia para o doente, tinham força de definição; percebeu que havia tarefas para ele, na Faculdade, no país, no mundo! E tendo percebido, tornou-se forte. Quando jovem abre os olhos, cai toda uma estrutura apoiada em falsas premissas.
E então, procurou seus companheiros, e lutaram juntos. Lutaram para melhorar a escola; lutaram para participar nos órgãos diretivos da Universidade, a fim de unir seu idealismo de jovens à experiência dos mais velhos. Lutaram pela conclusão de um hospital de Clínicas, cuja conclusão foi tantas vezes postergada, um hospital padrão que mostrasse a todos como se pode fazer medicina de alto-padrão, quando a saúde do povo é colocada em primeiro lugar na escala de valores de uma nação. Lutou por uma reforma Universitária, que abrisse a todos os brasileiros as portas da Universidade, Universidade Brasileira – motor dinâmico de uma nova sociedade, não aleijada, não enquistada, mas em busca constante de solução para os problemas do país, Universidade integrada socialmente no momento histórico. O estudante lutou e sofreu, porque toda a vanguarda sofre, até que a coletividade perceba a justeza de sua ideias. Foi tachado de vagabundo porque fez greve; foi marcado como subversivo porque lançou manifestou.
Mas nada mais poderia detê-lo em sua trajetória. Principalmente quando o estudante de medicina deixou de encarar o doente como objeto de estudo no meio universitário, e foi conhecê-lo nos redutos da doença. Nas ambulâncias do SAMDU, nas vilas populares, ele penetrou no âmago da miséria.
E aí aprendeu uma nova medicina. Aprendeu que havia 100 pessoas esperando quando ele só podia atender dez. Aprendeu a diferenciar o amarelo de uma icterícia debaixo do pardo da sujeira. Conheceu malocas onde dormiam cinco pessoas numa cama: o pai, a mãe e 3 filhos. As crianças já estavam bem iniciadas em certos mistérios da vida. Como falar em psicologia infantil para estes pais?
Milhares de vezes prescreveu medicamentos, e milhares de vezes ouviu a mesma resposta: “Não há dinheiro para comprar, doutor”. E como insistisse, disseram-lhe uma vez a frase que ficou ressoando como um libelo: “Pobre só serve pra morrer mesmo, doutor”.
Aprendeu que, quando o paciente queria comprar os medicamentos, já os seus bolsos tinham sido pilhados várias vezes: o dono da gleba levara a metade da colheita, o patrão pagara menos do que devia. Depois vinha o arroz, o feijão, a despesa com um enterro, a cachacinha para afogar as mágoas. E no fundo do bolso vazio, ficava a receita amarrotada, junto várias outras.
O estudante de medicina aprendia sem cessar. E aprendendo, a velha miséria faria dele um novo médico. O estudante já não se perguntava, somente: Por que tuberculose? Por que verminose? Por que desnutrição? Por que ignorância?
E novamente aprendeu coisas. Não nos tratados de medicina. Não nas malocas. Mas nos jornais, no rádio, em livros.
Ele já sabia que os medicamentos são caros. Mas ficou sabendo também que a indústria farmacêutica teve, em 1960, lucros da ordem de 31 bilhões e setecentos milhões de cruzeiros, e que em matéria de indústrias rendosas, ocupa um destacado terceiro lugar. Ficou sabendo que cerca de 6 bilhões foram gastos em propaganda, sendo que, em alguns casos, os lucros chegaram a 26% do capital invertido, que nem sequer ficaram no país, foram drenados, através dos royalties, diretamente, das magras algibeiras do povo para os rechonchudos bolsos do truste. Mas ficou sabendo ainda, que, em nosso país, laboratórios do Exército Nacional fabricam e vendem medicamentos como Complexo B, dez vezes mais baratos que outros laboratórios.
Ficou sabendo que o camponês que ele atendia era apenas um dos 2.000.000 de agricultores sem terra do Rio Grande do Sul. 514.000 famílias vivem marginalmente nas zonas rurais, sem terra sequer para a sepultura, enquanto 4.500 proprietários são donos de mais da metade das terras do Estado.
E esta foi a última lição que aprendeu: no Brasil, a miséria é o grande inimigo da medicina.
Levou seis anos, aprendendo estas coisas. Na escola da vida, não há exames nem diplomas, mas nós terminamos aqui esta história, e voltamos.
Aqui estamos nós, médicos de 1962, diante de vocês.
Diante de vocês, queridos pais, a quem esta formatura em primeiro lugar pertence. Pais pobres que se sacrificaram para que tivéssemos as possibilidades que eles não tiveram. Pais imigrantes que deram seu esforço pela construção de um Brasil melhor. Pais professores e médicos que vêem no doutorando de hoje, o herdeiro de sua luta e de sua esperança. Pais que já não estão entre nós, mas que permanecem vivos em nosso espírito, vocês guiaram a mão que hoje empunha o bisturi; vocês educaram a mente que hoje raciocina contra a morte. Vocês fizeram pulsar o coração que hoje se comove com a doença e o sofrimento.
Estamos diante de vocês, esposas, noivas, namoradas, cuja vida é nossa vida, cujo ideal é nosso ideal. E alguns de nós, hoje, recebem o olhar admirado dos filhos, cuja formatura querermos assistir, quem sabe daqui a quantos anos.
Estamos diante do dr. César Costa, nosso paraninfo, cuja escolha tem para nós um profundo significado. Este moço tranquilo, amigo de todos, que bem poderia passar por formando, é no entanto um professor que alia a juventude à uma imensa cultura médica e a um grande idealismo. Nós homenageamos em César Costa o mestre que fez do seu saber um meio para nos ensinar, antes de tudo, a respeitar o ser humano.
Estamos diante de Pedro Luiz Costa e Paulo Duarte, obstetras, e de Décio Martins Costa, Raul Seibel e Rubião Hoefel, e nos lembramos de seus ensinamentos: somente a proteção à maternidade eà infância poderá criar novas gerações de brasileiros sadios de corpo e espírito. Estamos diante de Tauphick Saadi, Arthur Mickelberg, João Antunes, Enio B. Ferreira, Loreno Brentano – amigos de todas as horas. Todos mestres no verdadeiro sentido da palavra, embora nenhum investido da eternização na cátedra. Estamos diante de Paulo Pires da Silveira, funcionário dedicado, a quem muito devemos, e que personifica o esforço de todos os heróis obscuros sobre os quais se apoia a Universidade Brasileira.
Aqui estamos, diante de vocês todos.
E nós sentimos que há em vocês uma pergunta: que espécie de médicos serão estes, que hoje recebem seu diploma?
Na verdade, muitas são os caminhos que hoje se abrem diante de nós.
Há o caminho daqueles que, em seus empregos, lutarão para dar às classes menos favorecidas a assistência médica que merecem como seres humanos que são. E há aqueles que acumulam cargo sobre cargo, impossibilitando-se a si mesmos, de exercer uma medicina correta.
Há aqueles que, na carreira universitária, farão uma medicina de torre de marfim, procurando repetir os êxitos de centros mais avançados. E há aqueles que, imbuídos do verdadeiro espírito científico, procurarão fazer da pesquisa um caminho para a solução dos problemas de saúde do Brasil.
Há aqueles que irão para o interior, e terão de manter uma batalha constante para exercer uma medicina cada vez mais aperfeiçoada, ou então sacrificar sua honestidade profissional às contingências momentâneas.
É uma dura opção, entre as tentações de um êxito fácil, e as dificuldades de um caminho de dignidade.
Esta opção, esta possibilidade de poder e glória, está no diploma que hoje vocês todos nos entregam.
Mas neste diploma estão também 23 milhões de brasileiros com ancilostomose, 18,5 milhões com bócio endêmico, 3,5 milhões com esquitosomose, 1 milhão com doença de Chagas, 1 milhão com tracoma. Aí estão, no imenso país em que nascemos, à nossa espera.
É uma difícil escolha esta, em que entram nosso próprios problemas, tão diferentes, quanto diferentes são os seres humanos. E o médico é antes de tudo, um ser humano que precisa alimentar e vestir sua família, que luta, como todos, por um lugar ao sol.
Mas neste momento, há uma vanguarda que abre caminho, o verdadeiro caminho da medicina brasileira.
A medicina que só será verdadeira, quando na previdência social deixar de imperar o empreguismo.
A medicina que será verdadeira, quando os cursos de aperfeiçoamento forem acessíveis a todos; quando a formação universitária seja dirigida no sentido de uma maior ligação com a realidade brasileira, ao invés de representar um isolamento dos problemas de nosso povo.
A medicina que só será verdadeira, quando não se procurar resolver os problemas do interior brasileiro com medidas tais como o envio de médicos recém-formados. A presença dos médicos no interior só será solução, quando, junto conosco, forem hospitais e escolas, professores, engenheiros sanitários e agrônomos, quando junto com os médicos, vier uma reforma agrária radical, que dê condições de vida mais humanas ao trabalhador rural.
A medicina só será verdadeira quando os médicos deixarem de gravitar em torno da reduzida minoria de favorecidos que é constituída pela clínica particular.
Os problemas de nosso povo são gigantescos. Para enfrenta-los, precisamos de médicos de espírito gigante, armados com todas as conquistas da ciência, e, ao mesmo tempo, conhecedores profundos de nossa realidade sócio-econômica, e que se disponham a lutar tanto em um terreno como em outro.
O médico tem hoje um lugar definido na luta pela emancipação social e econônica de nosso povo. Seu lugar é ao lado dos operários, dos camponeses, dos estudantes, dos profissionais liberais, dos industrialistas, dos intelectuais, dos comerciantes, de todos os que lutam por um Brasil livre do sub-desenvolvimento e da exploração.
E o objetivo desta luta é um só: restabelecer a dignidade do homem brasileiro. Assegurar as suas liberdades: liberdade de comer e de vestir, liberdade de educar-se, liberdade de decidir sobre os caminhos de nossos pais.
Vamos lutar com nossas forças e nossas fraquezas, com a consciência de não sermos donos de verdades eternas, mas com vontade férrea de aprender com nossos erros. Vamos lutar juntos, sabendo que poderemos divergir muitas vezes, mas confiando em que o tempo e a experiência mostrarão a rota segura.
Somente nestas condições é que haverá possibilidade de exercer uma verdadeira medicina. E mais ainda, quando desaparecer da face da terra o terror de uma guerra atômica, quando o direito de cada povo decidir sobre seu destino for respeitado, quando desaparecerem as suásticas e os linchamentos de negros.
Todas estas esperanças conduzem a um objetivo: um regime em que o trabalho de todos reverta em benefício de cada um, em que todo o ser humano obtenha da sociedade aquilo que necessidade para ser feliz. Este objetivo será alcançado: o mundo marcha para o socialismo, e neste caminho está também o Brasil. Quer seja um socialismo de fundo marxista, quer seja um socialismo de fundo cristão, o que importa é termos um socialismo autenticamente brasileiro e independente, e não cópia mecânica de outros regimes.
Um regime que tenha os braços abertos para todos os povos do mundo, para os norte-americanos e para os iugoslavos, para os suecos e para os hindus. Que seja repelida a malta dos traficantes de guerra, dos que transformam o sangue de homens, mulheres e crianças nos lucros fabulosos dos trustes e monopólios.
Neste dia, realizar-se-á a milenar profecia de Isaias:
“E morará o lobo com o cordeiro e uma criança os guiará (Cap. 11, V5), E o deserto se alegrará; e o ermo exultará e florescerá como a rosa (Cap. 31, V1). Ó vós todos que tendes sede, vinde beber, os que tendes fome, vinde comer, sem dinheiro e sem preço (Cap. 55, V1). Nunca mais se ouvirá de violências sobre a terra (Cap. 60, V18).”
Nós temos confiança. Uma confiança ilimitada nos novos tempos em que vivemos, em que o mundo desperta, em que a América Latina desperta, em que o Brasil desperta.
Um país que conseguiu arrancar petróleo de seu sub-solo, que abriu estradas, que construiu usinas, que deu à ciência mundial nomes como César Lattes, Carlos Chagas, Adolpho Lutz, Manoel de Abreu, Oswaldo Cruz e tantos outros – um país assim achará seu caminho médico. Nós estaremos neste caminho.
Meus colegas: aproxima-se o momento da despedida. Durante seis anos, nós, que éramos estranhos, nos tornamos amigos, e mais do que amigos, irmãos. Tivemos juntos alegrias. Tivemos a tristeza imensa de ver, neste dia derradeiro, que há entre nós um lugar vazio: o lugar de um colega que foi vítima do terrível mal, que tantas vezes aprendemos a temer. E isto nos une ainda mais. Somente dividindo esta dor imensa entre cento e três corações, podemos superá-la melhor. Levaremos junto esta recordação saudosa. Lembremos que, tendo a doença tão perto de nós, maiores serão nossas forças para combatê-la.
Prossigamos juntos, colegas, Hoje, dia da formatura, quando o Brasil nos chama para o caminho da medicina honesta realizadora, nós podemos responder, como tantas vezes o fizemos no curso médico:
– Estamos presentes!