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30 de junho de 2014
A janela discreta de Moacyr Scliar

rubempenz

RUBEM PENZ*

Crônica: a janela pela qual a literatura contempla o cotidiano

Moacyr Scliar[1]

Escolha um lugar. Uma opção é estar de passagem pela calçada, em Porto Alegre, no Bom Fim ou no mundo, cruzando diante de uma janela para, desta forma, ser visto pelo cronista. Então, espiando para dentro do texto que vem de lá, notar que o escritor fala exatamente de você. Sim! De suas dores e alegrias; de seus medos e aventuras; de seus questionamentos e teorias; de seus segredos e também da opinião que, se não é sua, é igualzinha àquela que lhe acompanha.

A segunda alternativa é colocar-se ao lado do cronista, visando por seus olhos paisagens que sua rotina não costuma contemplar com apuro – situações estranhamente familiares. Escutar muito de perto seus argumentos sobre o cenário oferecido, ao pé das letras. Será a oportunidade de descobrir novos conceitos, ou de enriquecer (questionar?) suas particulares convicções com argumentos ora surpreendentes, ora óbvios, mas sempre sensatos. Muito sensatos.

Em um lugar ou outro (realmente não importa), escolha ler as crônicas de Moacyr Scliar. Poucos escritores na história da literatura brasileira foram tão generosos, tão encantadores e tão persuasivos utilizando-se do gênero por ele definido como sendo a janela para o cotidiano. Scliar conseguia o equilíbrio raro: era sério, mas jamais impertinente; era humorado e nunca jocoso; era leve sem ser superficial; era elucidativo nem parecendo que muito nos ensinava; transmitia esperança mesmo quando comunicava graves sinais de alerta.

Quem não o conheceu poderia pensar que estou exagerando. Porém, bastava dividir com Moacyr Scliar uma roda de conversa, numa cerimônia oficial ou num domingo de parque, para conferir a autenticidade destas palavras. Fiel ao gênero que consagrou nomes como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos e Luis Fernando Verissimo, entre outros, Scliar usava e abusava da proximidade entre narrador e autor que só a crônica permite. Assim, escrevia como quem estivesse compartilhando com o leitor a singela opinião do momento, pronunciada com a própria voz.

Sua partida deixou uma lacuna muito difícil de ser ocupada por outros cronistas. Primeiro, porque era impressionante sua produção, sempre com qualidade acima da média. Depois, pela singularidade: que outro, senão um médico, poderia oferecer tantos diagnósticos de nosso tempo? Que outro, senão um gentleman, poderia falar tantas verdades sem se indispor com seus pares? E que outro, senão um sábio, poderia revelar aquilo que todos teríamos a obrigação de conhecer?

Resta-nos o consolo de contar com suas crônicas publicadas em livros como A massagista japonesa, Um país chamado infância, Dicionário do viajante insólito, Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar, O imaginário do cotidiano. Tê-lo sempre por perto, apresentá-lo aos amigos e aos filhos. Desfrutar de sua vista privilegiada das janelas de nossa vida, indiscrição confiada a quem sempre foi, acima de tudo, um homem discreto. Com Moacyr Scliar na biblioteca, nunca faltará paisagem.

[1] Definição especialmente feita para ASSIS, Valesca, Todos os Meses. Porto Alegre: AGE, 2002. p. 7.

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*Rubem Penz, porto-alegrense de 1964, é publicitário, escritor e músico. Produz crônicas semanais desde 2003, inicialmente publicadas apenas na internet e, depois, em veículos do Brasil e exterior. Seu livro de estreia, O Y da questão e outras crônicas, foi finalista dos prêmios Açorianos de Literatura e Livro do Ano pela Associação Gaúcha de Escritores (AGES). Atualmente é cronista do jornal Metro Porto Alegre. Desde 2008 ministra oficinas de crônicas em sua cidade natal, com destaque para a oficina Santa Sede – crônicas de botequim, que já alcança a quarta antologia. Em RUBEM escreve quinzenalmente às sextas-feiras.

Fonte: RUBEM