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23 de maio de 2018
Redescobrindo Scliar | As faces da verdade: história, biografia e ficção em Moacyr Scliar

Recentemente lançado na Croácia, o romance “A Majestade do Xingu” ganha uma nova leitura a partir da análise do mestrando em literatura da UFRGS, Alisson Preto Souza. Ele é o mais novo convidado da nossa série Redescobrindo Scliar, onde amigos, colegas e admiradores desbravam obras que também merecem amplo reconhecimento na carreira do escritor. Não percam, abaixo, o texto do Alisson!

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Moacyr Scliar, escritor e médico que focaliza suas criações literárias em questões relacionadas à identidade judaica e à diáspora, com mais de cem obras escritas, publica, em 1997, a obra A Majestade do Xingú. Obra que traz um narrador que relata, em primeira pessoa, às adversidades da vida de uma família judaica para deixar seu país de origem e buscar a oportunidade no Brasil.

A importância da literatura como potência para um esclarecimento histórico e político na construção da identidade é irrevocável. Um dos aspectos da literatura de Scliar é esta articulação entre discursos que navegam entre história, ficção e memória atravessada, sobretudo, pela movimentação da identidade judaica. Dentro de suas especificidades, essas literaturas revelam tanto as performances de identidades migrantes quanto as pedagogias para a construção da nação brasileira. Consequentemente, no espaço de múltiplas performances culturais, sobreposições, acabam abafando, oprimindo e suprimindo práticas culturais de certas comunidades, como assim destacam os estudos culturais. Curiosamente, alguns autores resolvem contar essas histórias apagadas e tão infrequentes dentro dos sistemas de ensino e do âmbito público: um exemplo desses autores é Moacyr Scliar.

A obra A Majestade do Xingu é narrada por um homem que fala com o doutor a respeito de uma trajetória significativa de sua vida: o encontro com uma figura que admira que é Noel Nutels. O narrador retoma a trajetória imigratória de sua família e considera contar a história um ato de extrema pertinência. O fenômeno da imigração no Brasil está presente na obra A Majestade do Xingú uma vez que a trajetória do narrador tem início nos cenários do leste-europeu, e destino no clima e espaço tropical do nordeste brasileiro, onde o povo judeu teria oportunidade para exercer sua liberdade e seus negócios.

Neste incrível romance, o mote para a imigração está associado as questões relacionadas à repressão da identidade judia e as condições de vida no leste europeu: a fuga dos pogroms, dificuldades relacionadas à peste branca e as condições de subsistência da família. A presença – pouco registrada pela história do Brasil – do personagem Noel Nutels na narrativa de Scliar traz à obra traços biográficos que se fundem à história do narrador judeu.
Nutels fora um médico judeu importante no que concerne o bem-estar indígena. Em 1913, ele nasceu na atual Ucrânia. Em 1921, imigrou para o Brasil residindo em Pernambuco por algum tempo. Em 1938, formou-se em Medicina no Rio de Janeiro. Em 1943, foi o médico da primeira expedição do Roncador-Xingú, aliado a um programa governamental chamado Marcha para o Oeste criado durante o Estado Novo.

Tanto a conversa com o médico na UTI, o desejo do pai do personagem-narrador, quanto a figura de Nutels são índices da importância da medicina como ferramenta para mudança social. A medicina é o pano de fundo que costura tanto a interioridade quanto a exterioridade da narrativa de Scliar. Mesmo com toda relevância na história nacional brasileira, a história de Nutels não é nem popularizada tão pouco reconhecida pelas pedagogias que dizem o que é importante saber, ou não, sobre o Brasil e sobre o judeu. Através da relação entre Nutels e o narrador, ao longo da trajetória dos personagens, percebe-se um desejo inconsciente e comum relativo à realidade e cultura judaica: deter um lugar de valor e reconhecimento no estrato da comunidade judaica através da medicina. Este lugar está relacionado à profissão de médico.

Os médicos possuem um papel social importante na comunidade judaica. Através do estudo, mesmo os pobres podem tornar-se médicos. Só assim, de fato, os pobres possuem a oportunidade de ter algum reconhecimento valioso dentro de sua cultura. Os médicos geralmente atendem a família dos condes e são tratados com todo luxo, tendo fartura uma ótima hospedagem e seus desejos atendidos. Apenas pessoas ricas poderiam hospedar, pagar e prover aos médicos. Sobretudo, destaca-se que, tanto o medico como seus familiares ganhariam passe-livre nas perseguições religiosas: um título que concede ao homem e sua família uma espécie de neutralidade político-religiosa, segurança e riqueza. Este aspecto é importante uma vez que Nutels, ao chegar no Brasil interessa-se as questões indígenas. O indígena no Brasil perde o território e sofre com a disseminação de doenças trazidas pelos europeus séculos anteriores. Scliar decide retomar uma dessas histórias mal ou pouco contadas referente à incursão da cultura judaica no Brasil, e escolhe ir mais além, homenageando Nutels, um judeu que escolheu preocupar-se com uma das questões até então mais relevantes da construção da identidade brasileira que é a exclusão, o descompromisso de diversas ordens e o esfacelamento da cultura indígena no país.

A presença da identidade judaica no Brasil é expressa através da escrita de Scliar, que assim como Noel Nutels e o narrador, possui ascendência judaica. Scliar é filho de imigrantes judeus nascidos em Bessarábia, e mesmo embora a obra trate a respeito da presença do estrangeiro no Brasil, também homenageia um judeu pela empatia e cuidado por um povo que não é o seu. Uma das referências a esta homenagem se dá no título da obra que brinca com as palavras “Majestade” e “Xingú”. Por um lado, a palavra “Majestade” traz uma referência não só ao nome do que viria ser a loja do narrador. Por outro, traz também as histórias dos tzares, supremos conquistadores ou monarcas do leste europeu. Em relação à palavra “Xingú”, esta é reveladora de uma área em que vive a maior concentração indígena do país, sublinhando o interesse voluntário de Nutels com as minorias no Brasil.

A Majestade do Xingú expõe a maestria de Scliar no processo de criação literária que usa a biografia para expressar a voz da identidade judia. Apesar de utilizar a história de um importante judeu na história do Brasil, o autor não adere a estética de um texto biográfico. A história de A Majestade do Xingu é dessa forma senão uma alternância de histórias contadas entre Noel Nutels e o narrador; entre o saber empírico, a realidade do leitor e as fabulações do escritor; entre a memória e seu efeito no presente.

A qualidade da criação literária de Scliar está balanceada entre a pesquisa bibliográfica, a consciência do movimento afetivo no ato de contar histórias e na preocupação da verdade com as formas que as subjetividades são contadas pela cultura e o chiste. Dessa forma, a biografia é usada, sobretudo, como pretexto para dar voz a questões ideológicas pertinentes a atualidade. A escolha da biografia revela a consciência da recepção em relação ao gênero, que por estar crivado em fatos da vida real, pretende ser interpretado como uma espécie de fonte confiável e creditada por seu cerne empírico, oficial e absoluto. Este uso ambivalente do gênero facilita a criação de um espaço de aprendizagem aberto. Este pretexto, em termos didáticos, facilita entendimentos que até então persistem abafados ou apagados em nome de certas verdades.

Com o uso de formas não-lineares de narrativa, Scliar nos oportuniza reaprender a ouvir certas histórias tão infrequentes, apagadas do imaginário brasileiro, como a ocorrência das imigrações. Em especial, seu trabalho remonta o entendimento da trajetória dos judeus no território brasileiro até a exploração de discursos que competem às histórias das imigrações e o antissemitismo no Brasil, tornando-se imprescindível para literatura brasileira contemporânea.

ALISSON PRETO SOUZA
Mestrando da Área de Literatura do PPGLETRAS na UFRGS. Licenciado em Letras Português-Inglês pela FURG em 2011.