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20 de junho de 2018
Redescobrindo Scliar | Queres saber sobre Porto Alegre?

O ficcionista e professor Luís Roberto Amabile sempre lembra que foi Moacyr Scliar quem o apresentou à cidade de Porto Alegre. Não pessoalmente, mas através das tantas histórias que escreveu usando a capital gaúcha como cenário. Tudo começou com a novela “Mês de Cães Danados”, publicada em 1977. E o que aconteceu dali em diante? Bom, isso o Luís Roberto nos conta abaixo com a sua participação para a série Redescobrindo Scliar. Confiram!

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Queres saber de tudo? Queres?

Então eu conto.

Quem primeiro me apresentou Porto Alegre foi o Moacyr Scliar.

Não pessoalmente, mas através de um de seus emissários – como às vezes gosto de chamar esses seres, os personagens, a quem os escritores sopram o fôlego da vida.

Encontrei o emissário quando eu era um jovem estudante universitário em São Paulo e ele já era um mendigo com uma perna defeituosa, que mora nas ruas do centro da capital gaúcha, enrolado num poncho, pedindo dinheiro em troca das histórias que conta.

O ponto de encontro foi a novela Mês de cães danados (1977). O título se refere a agosto de 1961, quando, após a renúncia do presidente Jânio Quadros, houve um movimento militar para impedir a posse do vice-presidente, João Goulart, o que, por sua vez, gerou, a partir de Porto Alegre, a resistência que ficou conhecida como a “Campanha da Legalidade”.

Queres saber de tudo?, pergunta o mendigo na primeira página. Da Carta de Punta del Este? Da quedado cruzeiro? Do Banco da Província? Do Simca Chambord? Das Cestas de Natal Amaral? Do considerável número de populares bradando viva Jânio? Queres saber de tudo? Queres?

Eu queria. Então li e virei as páginas, uma em seguida da outra, ouvindo Mário Picuxa e sua marcante voz narrativa relatar como ele, filho de uma tradicional família dos Pampas, chegou àquela situação de morador de rua.

Sim, tem a ver com o contexto da “Campanha da Legalidade”, mas não posso ir além. Para não estragar a experiência de futuros leitores-ouvinte.

Posso dizer que Mês de Cães Danados é um caso exemplar de uso do recurso narrativo do flashback, que recupera eventos ou emoções referentes ao personagem.

Posso dizer também que na novela o mendigo conhece um homem que pelo sotaque ele acha ser de São Paulo – passa, inclusive, a chamá-lo de Paulista. Em certo momento descreve o centro de Porto Alegre ao forasteiro:

Talvez não saibas, porque não és daqui, mas esta via pública chama-se General Câmara. Eu ainda a conheço por seu nome antigo: Rua da Ladeira. É bem movimentada, como podes notar por esta gente que sobe e desce. Estamos aqui em pleno centro da cidade. Ali em baixo é a Rua da Praia, estás vendo? A Rua da Praia é a nossa principal artéria comercial

Parágrafos à frente, cita também o prédio de O Correio do Povo, a Catedral, a Assembleia Legislativa, o Palácio.

Eu conto então que, meses depois de ter conhecido esse emissário do Moacyr Scliar, vim ao Rio Grande do Sul pela primeira vez. Quis fugir da folia do carnaval paulistano e tomei um ônibus para Bento Gonçalves, ponto de partida de minha viagem pela Serra Gaúcha. Eu não precisava vir a Porto Alegre para tomar o ônibus de volta. Mas fiz questão. E caminhei da rodoviária até o Mercado Público. E depois pela rua da Praia, pela General Câmara. E fui conhecer o O Correio do Povo, a Catedral, da Assembleia, o Palácio… E acho que ouvi, e acho foi mais de uma vez: Queres saber de tudo, Paulista? Queres?

LUÍS ROBERTO AMABILE
Ficcionista e professor. Doutor em Letras pela PUC-RS.