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22 de abril de 2018
Redescobrindo Scliar | O universo nas ruas do mundo

Luiz Antônio de Assis Brasil | Foto: Tadeu Vilani/Agência RBS

Consagrado em 2003 com o Prêmio Jabuti por “A Margem Imóvel do Rio”, o escritor Luiz Antônio de Assis Brasil participa da série “Redescobrindo Scliar” com uma detalhada análise sobre a vida e a obra de Moacyr. A retrospectiva  remonta às temáticas que norteavam os escritos de Scliar e à influência literária exercida por ele com suas mais de 80 obras publicadas. Confiram abaixo o texto de Assis Brasil!

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O UNIVERSO NAS RUAS DO MUNDO

 

Temos de acreditar no livre-arbítrio. Não temos outra escolha.

                   Isaac Bashevis Singer

A vontade conduz uma vida

Uma história, quando avaliada do fim para o início, apresenta apenas um caminho possível, isto é, aquele que, linearmente, conduz às circunstâncias que encontramos no seu término. Essa rota torna-se então, por uma espécie de mágica, na única e inevitável. O protagonista “não poderia” seguir outro rumo senão aquele que seguiu.

Já quando uma história é relatada do início para o fim, ela apresenta em seu percurso inúmeras possibilidades, vários cruzamentos, acessos secundários, descobertas, decisões melindrosas, variantes inesperadas.

Essas idéias surgem quando se reflete sobre itinerário existencial e literário que levou um menino, filho de imigrante da Bessarábia, e criado no bairro judaico de Porto Alegre, a atingir a Academia Brasileira de Letras, a mais vernácula de nossas instituições. Se pensamos nessa história pessoal pela ordem inversa, tudo fica muito simples: ele atingiu a Academia, em seu caso, porque é um grande escritor brasileiro, e é um grande escritor porque muito leu e muito escreveu, e se muito escreveu e leu e isso deu resultado , é porque tinha um talento superior para a literatura, talento esse que já transparecia na escola, quando ganhou um concurso literário, fez as primeiras redações. Já em casa permitiam-lhe o acesso a uma boa biblioteca, e ao nascer contemplaram-no com um livro de presente. Nessa ordem contrária à linearidade cronológica e crescente, a história torna-se inexorável mas de certo modo, nós a trivializamos.

Quero propor o método mais verdadeiro e talvez mais cativante: aquele que irá descobrindo o surgimento de uma vocação e a prevalência de uma vontade absolutamente determinada. O protagonista dessa história é Moacyr Scliar. Sua vontade é que orientou seus passos, sua vontade é que determinou suas escolhas, e foi sua vontade, enfim, que “fez” a sua vida. Não estou pensando, por óbvio, no fatídico sintagma “poder da vontade”, tão a gosto das doutrinas fascistas; falo, aqui, de uma determinação serena, que não o cegou nem o transformou num celerado que luta por um ideal abstrato e inalcançável bem diverso, portanto, de uma de suas célebres personagens, o  sonhador Capitão Birobidjan, de O exército de um homem só.

A determinação de Moacyr era a de ser um escritor. Não apenas um escritor para seus pares ou para o quarteirão em que caminhou sua infância. Queria ser um escritor de verdade. Para isso  impôs-se privações e foi obrigado a abdicar de tudo aquilo que faz a delícia de quem saboreia por completo a vida.

Creio, entretanto, que estou antecipando coisas.

Vamos começar pelo princípio e enfrentemos as imprevisibilidades.

No Bom fim, o começo

Hoje com certa crise de identidade e bastante descaracterizado sob o aspecto arquitetônico, o bairro do Bom Fim abrigava, há seis décadas, a maior parte das moradas de judeus imigrados no século 20. Havia lojas modestas, algum comércio,  fábricas de móveis e pequenas confecções. As casas eram baixas e as calçadas ainda apresentavam aquelas lajes retangulares de arenito rosa, que se partiam ao menor peso e eram difíceis de reparar.

As lojas persistem, algo modernizadas, e o pequeno comércio foi substituído principalmente pelos bares. Na verdade, o Bom Fim transformou-se no bairro da boemia porto-alegrense. Ali pontifica o Ocidente, algo ruidoso, algo contestador e meio ousider, e que nos últimos tempos protagoniza festejados encontros literários.

Nesse bairro de Porto Alegre nasceu Moacyr, em 1937. O nome indígena, que evoca o filho de Iracema, de José de Alencar, foi uma homenagem ao escritor cearense; o Jaime, nome intermediário, é usual entre a comunidade judaica. Quando Moacyr nasceu, Erico Verissimo tinha 32 anos e já publicara, entre outras obras, Clarissa, Caminhos cruzados, Música ao Longe e Um lugar ao sol. Trabalhava na Livraria do Globo, e um ano antes lhe nascera o filho Luis Fernando.

O papai José Scliar possuía uma fábrica de ombreiras de lã e, depois, de acolchoados. A mãe, Sara Slavutzki, era professora. A casa, já velha, e em cujo forro os ratos apostavam corridas, tinha entretanto um belo pátio tapado por um matagal que, no dizer do escritor,  transformava-se em outro planeta, num mar em que ele velejava ou numa floresta africana.

No Bom Fim o menino Moacyr gastava as solas de seus sapatos, indo à escola, maravilhando-se com as fachadas em que brilhavam os anúncios luminosos. Nas janelas superiores habitava, às vezes, uma gaiola com canários belgas. Do outro lado da avenida Oswaldo Aranha, o majestoso parque da Redenção respirava seu frescor vegetal. Na primavera, os odores confusos das flores vinham até a calçada. Não eram apenas impressões visuais e olfativas; as auditivas tornaram-se importantes. E o que Moacyr escutava? Tentemos imaginá-lo num entardecer de verão porto-alegrense, quando o calor amainava sua tirania de fogo e as pessoas dispunham cadeiras porta afora, à busca de uma brisa que, em geral, não vinha. Ali conversavam sobre suas experiências da travessia do Atlântico, as durezas do trabalho, o acolhimento da nova pátria. Recuperavam, também, as histórias de suas terras onde caía a neve e que ainda eram vivas nas paisagens da memória: as hostilidades sofridas na Rússia e, mais perto de nós, as agruras que viviam os parentes e amigos submetidos a regimes discricionários e ferozes. Senhores plácidos, muitos ainda de barba talmúdicas e solidéu, podiam não notar o menino que passava a seu lado, magro, com um olhar algo desamparado, e que os escutava. Eram fragmentos de histórias, algumas mais complexas, outras mais simples, mas sempre derivadas da lembrança. E uma lembrança é sempre a lembrança de uma história.

Sua família era ampla e curiosa, povoada por um tio anarquista e culto, que assombrava os visitantes com suas pregações; um sonhador que, para sua felicidade, não chegou a assistir ao desmoronar das utopias. Outro tio era sonâmbulo e cantava ópera até dormindo. Também havia o primo Carlos, artista plástico que ganharia renome internacional, este com sonhos mais realizáveis, e que era até então o ponto de transcendência e ilustração do clã Scliar. Esse primo, a propósito, tornou-se amigo de Jorge Amado, e o grande escritor lhe freqüentava a casa. Ali Moacyr teve o primeiro vislumbre concreto de que a literatura poderia ser feita por pessoas que, como seres humanos, eram completamente comuns. Mais tarde Zélia Gattai iria lembrar-se do guri Moacyr, que por ali andava, atento a tudo e, especialmente, fascinado pela presença física do mítico escritor baiano.

Esse trânsito intercultural demonstra que os Scliar encontravam no Brasil um generoso espaço de acolhimento, um país não-sectário, imerso naquela cordialidade de Sérgio Buarque de Hollanda. Claro, nada era sem problemas, e talvez os Scliar se incomodassem com a falta de formalidades, ou o estilo algo burlesco dos brasileiros. Mas isso era nada, comparado com os benefícios da liberdade tropical.

Na escola judaica, a mesma em que sua mãe era professora, ele escreveu seus primeiros textos. Um deles mostra-o convicto da missão do povo hebreu e em especial põe esperanças no então recém-criado estado de Israel. Não estava brincando nem escrevendo panegíricos infantis: nas idéias era quase  um adulto.

Colégio Nossa Senhora do Rosário: a instituição confessional representava um paradoxo. Dada sua condição, Moacyr achava que estava condenado a assar no inferno; logo percebeu, porém, que essas ameaças eram infundadas, e as facções nunca entraram em litígio. Ele soube fazer amigos e seduzir professores com seus escritos. Sob certo sentido, esse foi um momento capital, em que ele sentiu o contraste entre a tradição praticada em sua casa e a que percebia na cultura circundante em que nascera. Saber a língua nacional, e saber bem e mais, tornar-se um escritor nessa língua, era a superação absoluta de todas   as estranhezas e dualidades.

Surgem o médico e o escritor

Depois, Moacyr passa a um colégio público, na altura o melhor que tínhamos, para fazer o curso científico. Por essa época o jornal Correio do Povo, de Porto Alegre,  publica seu primeiro conto, O relógio.  

Cumprido o secundário, vem a decisão profissional. A melhor escolha, nesse contexto, é o curso de Medicina. Não sendo rico, a medicina, além de proporcionar-lhe o cumprimento de uma vocação, representa certa regularidade financeira no futuro.

Aqui ocorre sua primeira decisão: inscreve-se num concurso literário. Uma coisa é acreditar em sua própria vocação; outra é pô-la à prova. Mas foi feliz: vence o concurso, o que será a antevisão dos tantos prêmios que viria a receber na vida. O contemplado ganharia um par de sapatos. No auge da glória foi, pressuroso, à sapataria que patrocinava o certame e escolheu um belo par, caríssimo, elaborado com couro de crocodilo. O dono do estabelecimento, porém, mandou que escolhesse dentre os saldos que estavam num balaio. A decepção não durou muito: seu pai patrocinou a diferença de preço.

Ei-lo agora frente ao espelho: um jovem escritor calçando um belo par de sapatos de couro de crocodilo. Ganhou-o com o produto de seu talento e se seu esforço.

E o que lê o jovem escritor? Segundo ele próprio, tudo. Na primeira infância, Monteiro Lobato e Viriato Corrêa, tal como milhares de brasileiros. Jovem, as coleções infanto-juvenis da editora Globo, com suas histórias de piratas e aventureiros.  Mais tarde, Scliar sempre referirá à importância fundamental de Kafka na sua formação. O autor de A metamorfose viria a revelar-lhe a possibilidade do fantástico, o mesmo que aconteceria com García Márquez. Se em Gabo a leitura de Kafka o conduz ao realismo mágico, com o qual viria a discutir a contingência social latino-americana, em Scliar o processo foi diferente: não apenas ele adquiriu a certeza de que o real pode ser transformado pelo pensamento, possibilitando infinitas maneiras de repensar a sociedade mas, também soube que a deformação do real é um poderoso instrumento para  repensar a sua específica condição judaica. Quer-se dizer: em García Márquez o mágico é um procedimento e uma urdidura narrativa; em Scliar o mágico é uma decorrência dos temas a que se dedica.

Demos um salto, agora, bem além do vestibular: lá está ele, ainda magro, ainda algo espantado, nos corredores da Enfermaria 29 Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre chefiada por Rubens Maciel, um nome lendário , de jaleco e estetoscópio, a inspecionar doentes. Não desgosta daquilo, mas logo ele percebe que sua vocação estará mais ligada às preocupações da saúde coletiva, coisa que poucos doutorandos antevêem entre suas aspirações. O exercício da saúde pública contradiz o destino habitual de um médico pois, em primeiro lugar, torna-o funcionário público e, em segundo, priva-o da presença física do paciente; em compensação,  dá-lhe a possibilidade de, literalmente, evitar a doença pela raiz.

Nos corredores da Santa Casa, porém, algo acontece entre as folgas dos plantões: o doutorando escolhe algum lugar de menor trânsito e escreve contos. Escuta  à distância o tinir dos instrumentos cirúrgicos, as lamentações, os estertores, e sente o pertinaz cheiro dos medicamentos, o qual se entranha nas roupas.

Logo ocorre o inevitável, e aí está ele, originais sob o braço, levando-os para imprimir. Histórias de um médico em formação é uma obra de juventude, mas é fundamental que ele se veja em livro. O resultado não o agrada, pois se o médico está em formação, o escritor também o está. Como ele próprio diz, “Os exemplares que os familiares não adquiriram eu busco resgatar, para não deixar vestígios”. Não nos decepcionemos com essa atitude aparentemente desumana. Renegar os primeiros livros faz parte da trajetória de qualquer escritor consciente. Significa que ele é capaz de avaliar de modo crítico a sua obra. Significa, enfim, a aquisição da maturidade pessoal e literária.

Em 1962 o ambiente político brasileiro tumultua-se a cada dia. No ano anterior ocorre o famoso fenômeno da Legalidade, um movimento de massas liderado pelo Governador Leonel Brizola, e que exigia a posse de Jango Goulart na Presidência, já que os militares se opunham a isso. O movimento dá certo, mas são dias de grande balbúrdia. O País em peso pede as reformas de base, e Jango deixa-se levar por veleidades populistas, aderindo às reformas e aliando-se à esquerda. Comícios se sucedem, e alguns são liderados por Jango. É preciso mudar o Brasil. O Presidente da República, sem o saber, dá razões a seu próprio colapso.

Nesse mesmo ano de 1962 acontece em Porto Alegre um fato original que marcará para sempre a nossa história literária: a editora Difusão de Cultura lança uma antologia de contos denominada Noves do Sul.  Participam do livro alguns escritores que seguirão publicando: Josué Guimarães, Tânia Faillace, Sérgio Jockyman, Ruy Carlos Ostermann, Sérgio Ortiz Porto, Lara de Lemos. E Moacyr, ainda na faculdade.

No ano seguinte faz sua residência médica e, no ano posterior, dá-se o previsível golpe militar, o qual institui uma ditadura feroz que exclui, expulsa, prende, tortura e assassina milhares de brasileiros. Naqueles anos iniciais, entretanto, o regime ainda não mostra toda sua face, e há alguns pensadores, ideologicamente de centro, imaginando que após o consulado do General Castelo Branco a redemocratização virá logo. Nessa falsa calmaria, e porque a vida segue seu rumo, Moacyr casa-se com Judith Oliven, uma união que se mantém firme e criadora até nossos dias.

Tempo de ditadura, tempo de alegorias

O regime de sombras dos generais, apoiado por fenômenos idênticos na vida política de vários países sul-americanos, começa a legislar através dos famosos Atos Institucionais, criando a censura em todos os níveis. Os escritores procuram subterfúgios para oporem-se ao regime, e os textos tornam-se gradativamente metafóricos e alegóricos, e pontificam os nomes de Alejo Carpentier, Vargas Llosa, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Júlio Cortázar. Em tal contexto deve ser lido o livro de contos O carnaval dos animais, que Moacyr publicaria m 1968. A obra, em virtude de sua qualidade estética,  pode ser considerada o verdadeiro passo inicial de sua carreira, e está imersa no clima intelectual da época. São histórias de animais, escritas com essencialidade e força, e nelas está presente uma ponte para a condição humana, isto é: os humanos reconhecem-se nos atributos animalescos, e estabelecem com os bichos relações patéticas e até cruéis.

Se Histórias de um médico em formação ainda é o registro ficcionalizado das experiências de um estudante universitário, O carnaval dos animais apresenta-se como literatura de escolha, feita com motivos estranhos às vivências diretas do autor. É possível afirmar que este é primeiro livro totalmente literário de Moacyr.  E não por nada recebeu um prêmio da Academia Mineira de Letras. Temos um escritor que ninguém duvida que irá fazer carreira.

É por essa altura que ele passa a publicar artigos científicos em revistas médicas do Brasil e do exterior, inaugurando o viés que levaria a escrever vários livros ensaísticos. É interessante perceber que essa linha de produção sempre esteve acompanhando sua obra ficcional, e uma não interferiu na outra; pode-se dizer que são rigorosas paralelas, no sentido de um universo euclideano.

Sendo a vida o resultado de nossas escolhas pensando à Sartre a vida de Moacyr começava a delinear-se. Depois de publicado O carnaval dos animais, porém, é preciso outro tema. Por vezes encontra-se, em depoimentos de escritores, a sensação de um “vácuo” após o primeiro livro. Esse “vácuo” criativo, se acontece, pouco dura, porque Moacyr não suporta a inatividade.

A vertente judaica

Como mansamente esperado, como uma conseqüência de ser membro de uma comunidade com forte autonomia cultural e ancestralidade, Scliar, o já escritor, sente em si algo mais forte que o intriga, e que sua contribuição à cultura brasileira pode ser maior, mais efetiva e relevante. As histórias escutadas nas calçadas sonolentas do Bom Fim começam a ganhar sentido. A matéria-prima emocional está ali, pronta. Ele está preparado, tem os meios, as razões e o que move tudo isso: a vontade. Basta dar um primeiro passo. E ele o dá, inaugurando a vertente judaica de sua obra, a qual virá a ser o Leitmotiv de inúmeros livros e, durante algum tempo, a única marca identificadora do Autor perante os leitores, a crítica e a Universidade.

Acontece com Moacyr, agora Scliar, uma conversão às origens, tal como ocorreu a Erico Verissimo quando, depois de vários livros de caráter urbano, descobriu que a sua cultura originária, gaúcha e campeira, estava pedindo para ser escrita. E essa conversão foi responsável pelo O tempo e o vento.  

Assim é que, quatro anos depois de O carnaval dos animais, surge A guerra no Bom Fim, seguidos de O exército de um homem só  (1973) e Os deuses de Raquel, esta última no mesmo ano da morte de Erico Verissimo [1975]. Essas três obras, significativamente, são lançadas por uma editora de fora do Rio Grande do Sul, o que representa um passo além no sentido da projeção nacional de Scliar.

Agora sim, algo novo e inconfundível acontece no cenário das letras brasileiras, e os críticos do eixo Rio-São Paulo passam a observar melhor o jovem escritor de Porto Alegre. A cultura judaica ganha uma voz que, vinda de seu próprio meio, articula-a com a cultura dominante, estabelecendo um diálogo franco, em que as mazelas de ambas aparecem sem desculpas, mas também com suas específicas qualidades.

Quando referi às experiências coletivas da comunidade judaica, posso ter passado uma idéia de que a obra de Scliar constitui-se em espelho dessa comunidade. Não é isso, porém. Essas obras podem ter o Bom Fim por cenário emocional e cultural, mas o transcendem na medida em que a temática judaica aparece como deflagradora dos romances que, por universais, não dependem dela.

Ser judeu, como diz o Nobel da Paz de 1986, Elie Wiesel o notável autor de All rivers run to the sea é estar sempre às voltas com a questão do começo, das origens; em outras palavras: o início preocupa mais do que o fim. Nesse aspecto, concorda com Walter Bejamin, de que o judeu mergulha no futuro recuando.

O Rio Grande do Sul é uma região de passado histórico recentíssimo, por ser uma das últimas regiões do mundo a ser colonizada pelo europeu; mais jovem do que o Rio Grande, nessa perspectiva, apenas a Austrália. Por outro lado, como a compensar essa “falta de História”, o Estado sulino possui uma tragédia fundadora situada logo ali, no século 19: a Guerra dos Farrapos, que pôs o Rio Grande em confronto com o Império Brasileiro e instituiu uma república à parte. Isso, contudo, não é capaz de preencher todas as aspirações de estabilidade que o passado confere. Talvez por isso sejam tão fortes no Rio Grande do Sul as manifestações “tradicionalistas”, ou, mais modernamente, “nativistas” conceitos que, semanticamente, mantêm um certo cariz ideológico. Ambas pretendem preencher uma lacuna cultural, pertencente ao campo da psicologia coletiva. Nesse contexto de acentuado “nacionalismo regional”, as  imigrações mais novas sentem, mais do que as outras, a necessidade de se ancorarem nas suas origens.

As obras da “vertente judaica” passe a expressão imperfeita, mas operativa de Scliar  inserem-se nesse domínio. O cenário, na década de 70 do século passado, já é propício para que a segunda geração dos imigrantes, por manejarem a língua nacional, estejam aptos a construir o imaginário de sua etnia. Não é, porém, um imaginário afastado daquela cultura que o abriga. Scliar toma justamente as circunstâncias de seu tempo e de seu espaço (o Brasil, o Rio Grande do Sul, Porto Alegre, o Bom Fim, o século 20) para daí fazer a sua obra que, dessa forma, pertence a dois mundos em contínua fusão e re-criação. Esta talvez seja a maior virtude extra-literária de sua obra “judaica”: a de reconhecer que no hibridismo e na transformação reside a mais perfeita vitalidade de uma cultura.

As personagens dessas obras, quase sempre patéticas, são movidas por arrebatadoras vontades de realização, as quais contrastam com as possibilidades de colocá-las em prática e aí temos a tensão condutora das tramas. Se na tragédia clássica o fado impelia as personagens no rumo desesperado da destruição, as personagens judaicas de Scliar têm a sua vontade a levá-las no rumo obsessivo daquilo que, ao fim de tudo, acaba por apresentar duas saídas: a realização ou o fracasso mas sem o drama transcendental das símiles gregas, porque os tempos são outros.  Mas o sofrimento, diga-se, é o mesmo.

A condição judaica que, aliás, seria o título de um de seus livros de ensaios leva-o a lançar, em 1977, o romance (O ciclo das águas), pela Globo de Porto Alegre. O tema é algo constrangedor, o que lhe custa, à época, certa incompreensão: o tráfico de prostitutas européias para a América do Sul, fenômeno pouco conhecido

. Em (O ciclo das águas) acompanha-se o trânsito de Ester desde a Europa Oriental, passando por Buenos Aires e acabando em Porto Alegre; tem um filho, Marcos, com um estancieiro, e Marcos acaba formando-se em História Natural.
Talvez o maior alcance da perspectiva judaica em Moacyr Scliar, para além do literário, seja o seu caráter desmitificador. As culturas dominantes tendem a impor seus valores e seus rótulos aos grupos minoritários. No Brasil não temos o anti-semitismo bárbaro de outras partes do mundo, mas o passar do tempo veio agregando algumas idéias que são verdadeiros clichês ( mitos, talvez ( sobre os judeus; nas narrativas de Scliar temos uma visão intramuros da comunidade, e que ainda pode surpreender alguns: a pobreza originária, as peripécias para ganharem a vida, a existência de pessoas fora do eixo aceitável, os renegados e os que mantêm relações afetivas ou intelectuais com não-judeus. Essa atitude de transparência do escritor acaba por realizar um trabalho de integração e trânsito interpessoal. Os judeus, depois de Scliar, podem ter perdido algo de seu mistério, mas ganharam em humanidade.

Quem conta um conto, conta um romance

Pensemos, agora, numa questão de gênero literário. Scliar é, fundamentalmente, um narrador. Ao que se saiba, jamais escreveu um verso de poema. Essa “especialização”, aliás, é bastante comum no Brasil, diferentemente do que ocorre na atualidade em Portugal e mesmo em nosso País no século 19.

Como narrador, Scliar pratica o conto e o romance. Não é caso de dizer qual o gênero em que se sai melhor, pois não se deseja colocar o escritor em confronto consigo mesmo. É possível, entretanto, afirmar que o gênero “de origem” de Scliar é o conto; o romance surgiu um pouco depois. Para o público, a quem a obra de um autor não tem cronologia (quem sabe dizer o que veio primeiro: Pai Goriot ou Ilusões perdidas?), trata-se de um pseudo-problema, e como tal deve ser visto.

O conto é, possivelmente, o gênero narrativo mais sofisticado. Essa qualidade decorre da circunstância que muito exige do leitor, em função do subtexto que lhe dá sentido. Se pensarmos com Ricardo Piglia, todo conto narra duas histórias: uma que é visível e outra, mais profunda, que é cifrada. Jogando com esses dois elementos, cabe ao leitor o esforço de dar unidade estética e finalística à história.

Quase sempre alegóricos, os contos de Scliar não apresentam aquela instantaneidade que, para alguns, seria a marca do gênero. Se pensarmos exemplarmente nos textos de A balada do falso messias (1976) Histórias da terra trêmula (1976) e O anão no televisor (1979)  perceberemos que eles se desenvolvem no tempo e, quase sempre, no espaço, o que lhes dá grande expansão interpretativa, para além da possibilidade de versarem mais de um conflito.

Seria completamente falso dizer que são pequenas novelas, mas seria correto afirmar que possuem uma estrutura que, em certo sentido, lembram o gênero novelístico, o que faz de Scliar um descendente direto de Maupassant e, em certo sentido, de Machado de Assis. A sensação, após a leitura dos contos de Scliar, é que houve uma intenção totalizadora e harmônica; são bem demarcados os começos e os fins, e nesse arcabouço estrutural nada sobra e nada falta. A multiplicidade de conflitos, dessa forma, encontra espaço para o desenvolvimento de uma história aparente ( em geral muito simples, até ingênua, com seu conflito próprio ( e a outra, a verdadeira, que se arma nos indícios colocados na aparente ( diríamos: a verdadeira história, que pode ser dramática, pungente ou até cruel. As artimanhas do narrador, aqui, chegam a seu ponto máximo. Com extrema habilidade, sem dar-se conta, o leitor é induzido à reflexão que lhe é proposta.

Consolidam-se as carreiras do médico e do escritor
        
Em 1977, Scliar volta-se para um acontecimento histórico em que o Rio Grande do Sul teve papel protagonista: o episódio da Legalidade, já referido. O narrador de Mês de cães danados é um mendigo por opção, crítico e ilustrado, que estabelece juízos sobre o que está acontecendo. Scliar, aqui, usa de discreta ironia para pensar a política brasileira, a mesma ironia que viria a utilizar em  Cavalos e obeliscos (1980), uma novela destinada ao público juvenil. Em ambas está o olhar de suspeita às nossas mazelas públicas. No segundo caso, inclusive, ele viria a tratar de modo satírico um dos episódios mais emblemáticos da política do Rio Grande do Sul, protagonizado pelos soldados que, na revolução liderada por Getúlio Vargas, amarraram seus cavalos em torno do obelisco da Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro.

Ao mesmo tempo em que dá passos decisivos para a consolidação de tua trajetória na literatura, Scliar firma-se como expoente de sua geração médica: em 1978 assume o cargo de Diretor do Departamento de Saúde Pública da Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, função que exercerá por largos anos. O trabalho público, no decorrer das décadas, viria a ocupá-lo de maneira absorvente, mas não sabemos dizer a qual atividade dedica o melhor de sua capacidade intelectual; o certo é que Scliar virá a harmonizá-las de tal maneira que não saberemos onde termina o funcionário e começa o escritor, e vice-versa. Encontrado numa livraria do Rio de Janeiro ou de Nova York, ele poderá estar comprando tanto livros de ficção narrativa quanto de temas médicos de sua especialidade.

1979 virá a ser, também, o ano de Roberto Scliar, ou simplesmente Beto Scliar. Ele receberá do pai Moacyr, desde o nascimento, uma série de crônicas afetuosas nas páginas do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. A real dimensão desse afeto tornado  público talvez nem Scliar tenha a exata dimensão; o fato que essas crônicas justificam, consolam e apoiam uma geração inteira de pais, que nelas encontram a forma de estabelecer um franco diálogo com suas próprias paternidades. Hoje Beto é um homem, e quem conhece a família sabe que ali a troca emocional jamais cessou.      
O ano seguinte viria com a publicação de dois romances: Doutor miragem  e Os voluntários. Esse último constitui-se numa das mais pungentes alegorias da situação judaica posta em contraste: num barco que rumaria a Haifa, está o universo multi-étnico de Porto Alegre; o conflito do Oriente Médio, aqui, ganha um desenho inesperado, pois vem com o tempero da concórdia construtiva. Se há divisões, há também a possibilidade das uniões mais difíceis.    

Dentro dessa mesma visão, ele publica, em 1980, O centauro no jardim, um de seus romances mais festejados, que  veio a receber várias traduções, prêmios e críticas consagradoras. Foi a única obra brasileira incluída pelo National Yiddish Book Center, dos Estados Unidos, entre as cem melhores obras de temática judaica escritas em todo o mundo nos últimos duzentos anos. Essa narrativa, que pode ser lida ainda como uma alegoria da mesma condição judaica, o protagonista é metade homem e metade cavalo; mas erra quem pensa tratar-se somente de um texto que discute os problemas judaicos.

O centauro no jardim também joga, por via irônica, com uma das mais cara tradições da literatura gauchesca. Para entender o fenômeno, só recorrendo à História do Rio Grande do Sul. Os intelectuais e escritores do Partenon Literário, uma academia de letras porto-alegrense do século 19, vieram a fundar um mito, a que chamaram de Centauro dos pampas; o homem gaúcho formando uma unidade com seu cavalo, transforma-se num ser aventureiro, romântico, leal, guerreiro, que viria a ser o modelo de uma infinidade de produções poéticas e romanescas, contestado apenas no século seguinte. Em outras palavras: o mito do centauro possui, no Sul, uma carga ontológica e antropológica capaz de causar medo a quem quer que dele se aproxime. Numa região dotada de forte identidade, de resto uma identidade construída também e fundamentalmente pela literatura, qualquer discussão a respeito dessa famosa panóplia de valores corre o risco de levantar ressentimentos. É possível que nem todos tenham apreendido a paródia de Scliar, mas ela está presente com uma intensidade talvez só percebida por quem conhece o Rio Grande do Sul e seus temas mais caros. A outra leitura de O centauro no jardim é mais evidente: a divisão derivada da condição judaica, e não faltam exegetas competentes a discorrem sobre essa circunstância.

Se é possível perceber até agora a utilização do Sul do Brasil como espaço privilegiado para as tramas de seus romances, Scliar aos poucos amplia esses cenários para outras paragens. O Rio de Janeiro e São Paulo ( e outras geografias, inclusive continentais e européias  ( passam a figurar com freqüência crescente, culminando com um romance em que o próprio País é discutido: trata-se de A estranha nação de Rafael Mendes, em 1983. A perspectiva desse livro é inédita na obra de Scliar: os cristãos-novos, judeus que, forçados à conversão, mantiveram sempre intacta sua cultura e, em especial, sua religião. Percorrendo cinco séculos de História, o romance trata das vicissitudes por que passa a família de Rafael Mendes, tentando adaptar-se ao País.  

De 1983 a 1991, quando foi publicado o romance Cenas da vida minúscula ( uma história em que retorna o tema do judaísmo e em que as coordenadas do tempo e do espaço levam o leitor a geografia tão díspares como a Terra Santa e a Amazônia, ( houve um hiato na obra romanesca; estaria enganado, porém, quem pensasse em crise criativa, porque durante esse período Scliar publicou antologias de contos, livros de ensaios médicos e sobre a situação judaica, além de obras destinadas ao público juvenil. A propósito desse último gênero, Scliar viria a ser um dos mais atuantes escritores brasileiros, com obras que logo tiveram grande acolhida: No caminho dos sonhos, O tio que flutuava, Prá você eu conto, Um história só prá mim, entre outras tantas. Em todos esses livros há a tentativa de compreensão do mundo do jovem, suas conquistas e frustrações. Os finais das narrativas indicam uma fresta de esperança: nem tudo está perdido, mas nem sempre os pais estão com a razão, nem sempre a escola está certa. Não se quer ensinar nada. Trata-se de uma visão solidária da juventude, e não da visão de um escritor adulto que fala para jovens. Isso acaba por gerar uma imediata simpatia de seus leitores e uma identificação intensa com as personagens.   

Se é verdade que todo autor escreve a vida inteira a respeito de suas preocupações, Sonhos tropicais,  de 1992, vem mostrar que Scliar levou sempre a sério seu compromisso com a saúde pública brasileira: nessa narrativa temos revisitada a figura histórica do médico sanitarista Oswaldo Cruz que, no Rio de Janeiro nos inícios do século 20, luta desesperadamente por devolver à metrópole as condições de higiene necessárias a uma boa saúde da população; com isso, causa a célebre Revolta da Vacina, cujo escândalo ecoa até nossos dias. Oswaldo Cruz é um idealista, convicto de suas crenças, e não enxerga dificuldades impossíveis de serem superadas. É essa determinação obstinada que possivelmente encantou o autor do romance.

Por essa época, a presença nacional de Scliar firma-se com uma coluna na prestigiosa Folha de São Paulo, onde ele escreverá crônicas sob a forma da ficcionalização de notícias do mesmo jornal.
É curioso verificar como A majestade do Xingu, publicado no ano em que Scliar comemora 60 anos, traz de volta a fusão dos mitos literários do autor: mais uma vez temos um médico sanitarista, cuja personagem protagonista é Noel Nutels, judeu emigrado da Rússia, que ganha fama nacional e internacional por sua dedicação à causa dos índios. Uma personagem de lenda, de feição épica, que assume má-fama de esquerdista durante a ditadura militar brasileira. O narrador da história de Nutels, outro emigrado como ele, é visitado no leito de morte por vários oficiais militares do regime; quando um destes lhe pergunta como está passando, responde: “Estou como o Brasil: na merda e cercado por generais”. Este é o início do relato da vida fascinante de Nutels.

As origens: o eterno retorno

A passagem do tempo tem efeitos paradoxais: em alguns casos faz-nos esquecer as origens; noutros, a busca das origens torna-se mais dramática. No caso de Scliar, a busca retorna, mas sendo ele um homem que não se submete ao drama, e um homem que tem a determinação a conduzir-lhe, essa busca vem temperada por um saudável bom humor. Em A mulher que escreveu a Bíblia, de 1999, o autor tem seu ponto de partida para sua ficção numa afirmativa de Harold Bloom: a de que a Bíblia, o mais sacrossanto dos livros da tradição judaica, fora escrita por uma mulher. No romance, essa mulher aparece numa sessão de volta a vidas passadas, o que une a terapia da moda a uma investigação de nossas tão pequenas mesquinharias. Feia e enjeitada, mas ardente por amor, a protagonista possui a inteligência necessária para pôr no papel as mil aventuras dos textos bíblicos, o que não é façanha pequena. Foi imediato o sucesso da obra, tanto de público como de crítica, e isso rendeu-lhe mais um cobiçado Prêmio Jabuti.

Note-se que há um crescendo geográfico e temporal na obra de Scliar: sem abandonar seus temas mais caros, o autor investe por outras geografias humanas. Torna-se, lenta e pausadamente, quase determinadamente, num escritor internacional, o que se realiza não apenas pelas inúmeras traduções, mas pelas premiações; nestas últimas, está o Prêmio Casa de Las Américas, de Havana, por Olho enigmático, que lhe foi concedido em  1989.

Um tema que não pode passar ao largo é o do humor judaico que, carregado de melancolia, é capaz de rir de si mesmo e de zombar das situações difíceis pelas quais os judeus têm passado no decorrer dos séculos. Não é a piada que leva ao riso folgado, mas a piada da qual se vai sorrir depois de horas. Surgido no século 19, hoje há inúmeros escritores que o praticam, e um exemplo está em Woody Allen, aquele homem baixinho e feio que ultrapassa sua condição física através da inteligência e, também, de uma desconcertante auto-ironia. No caso de Moacyr, esse humor está presente, e o diria sem medo de errar, em todas as obras, mesmo aquelas cujo conteúdo seja dramático. É um humor que surge de inopino, aliviando a tensão e lançando, sobre o material narrado, uma suspeita não-amarga, não-destruidora, mas plena de reconhecimento da transitoriedade da vida. Aliás, esse humor amplia-se à própria pessoa de Scliar: em seu desempenho público, em conversas privadas, ele encanta seus interlocutores.

Eis aí outro aspectos de Scliar que merece ser mencionado: grande viajante, ele está sempre pronto a atender a convites para encontros e palestras, seja em Berlim, seja em Poço das Antas. E em qualquer desses lugares o vemos com sua inalterável simplicidade. Normalmente ditos de improviso, mesmo aquelas mais solenes, esses depoimentos públicos logo se transformam em conversas sobre o quotidiano da vida e da literatura. A partir de uma espontânea captatio benevolentiae, que deixa seus ouvintes à vontade, começa por sua história pessoal e chega às questões mais complexas. É no diálogo, porém, que essa qualidade de comunicador inato mais aparecem. Mesmo as perguntas mais curiosas ou extravagantes não ficam sem resposta. Talvez esse seja o caminho do escritor contemporâneo: debater, de viva voz, a própria obra. Numa época em que não há mais espaço para os ignorantes-iluminados, o escritor sabe que o conhecimento de seus processos criativos leva-o à necessidade de compartilhá-los com os leitores.   

O escritor agora é popular: a Academia

Chegamos ao ponto culminante desse itinerário. A Academia Brasileira de Letras é uma das mais respeitáveis entidades de nosso País. Aliás, Pierre Mille disse, a respeito da Académie Française ( e vale para nós (, que ela é a prova de que na França existem outros poderes, além do dinheiro e da política. Como todas suas congêneres internacionais, a ABL não existe sem a marca da polêmica, e algumas admissões desagradam a uma parcela importante da opinião pública. Isso, em vez de mostrar descrédito da instituição, evidencia, ao contrário, como ela é importante no cenário das letras nacionais.

Qualquer escritor pode aspirar à Academia, embora isso passe ao largo dos desejos de muitos. E porque pode aspirar, em 2003 Scliar candidata-se à Casa de Machado de Assis. É, sim, motivado por sua vontade, mas complementada pelo convite de vários acadêmicos. Um fato relevante é a campanha pública realizada no Rio Grande do Sul, que levanta milhares de assinaturas, fato que merece registro e tem uma dimensão para além do trivial, pois acaba unindo diversos eixos culturais sul-rio-grandenses. A hegemonia do gaúcho-campeiro foi forte e saudavelmente abalada, a mostrar que possuímos outras etnias fundadoras, e que o Estado é capaz de empolgar-se pela figura de um escritor urbano que transcende o espaço geográfico e emocional do Rio Grande do Sul, na medida em que propõe outros temas e, também, uma outra História.  

O resultado da votação é, na prática, uma unanimidade, o que legitima e justifica a candidatura. O menino do Bom Fim, que há cinqüenta anos se olhava no espelho calçando sapatos de couro de crocodilo, agora pode olhar-se usando o fardão acadêmico. Houve, de permeio, uma história longa, penosa, mas marcada por uma firme resolução.

Sua trajetória pessoal, vista na sucessão dos fatos, demonstra que não foi obra do acaso: foi, antes de mais nada, o resultado de um propósito que contornou as imprevisibilidades, e que o tempo viria a confirmar.

Como o escritor Scliar possui a mesma inquietação do menino Moacyr, a Academia é apenas um passo a mais: aquele homem que começou retratando as ruas do seu bairro, veio a retratar todas as ruas do mundo.”

LUIZ ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL