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5 de agosto de 2018
Redescobrindo Scliar | Fábio Prikladnicki analisa o dever do reconhecimento em “O Ciclo das Águas”

Jornalista e Doutor em Literatura Comparada pela UFRGS, Fábio Prikladnicki comenta o romance “O Ciclo das Águas” em mais um capítulo da nossa série “Redescobrindo Scliar”. Para Fábio, essa é uma obra que representa a habilidade de Scliar em iluminar grandes questões da sociedade através da literatura. O resto ele conta no texto escrito especialmente para o site. Confiram!

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“O Ciclo das Águas” e o dever do reconhecimento

Sabia-se pouco a respeito das polacas quando Moacyr Scliar publicou o romance O Ciclo das Águas, em 1975. Na época, a coragem de abordar os mais diferentes aspectos da experiência judaica, enfrentando tabus sociais, já caracterizava a atuação do escritor que estava recém em seu quarto romance – digo “recém” porque depois vieram muitos outros.

O Ciclo das Águas foi baseado no relato de uma paciente de Scliar, que atuava como médico no Lar dos Velhos, um asilo judaico localizado em Porto Alegre e em funcionamento até hoje. O próprio autor certa vez registrou que apenas mais tarde, em Buenos Aires, encontraria livros sobre o tráfico de judias da Europa para a América do Sul, onde se tornaram prostitutas. Eram agenciadas pela organização criminosa Zwi Migdal, que funcionou do século 19 até os anos 1930. No Brasil, aonde chegaram a partir de 1867, essas mulheres que fugiam do antissemitismo e da pobreza ficaram conhecidas como polacas, embora viessem também de outros países além da Polônia, usualmente enganadas pela promessa de casamento.

Esther, a protagonista de O Ciclo das Águas, inspirada na história da paciente de Scliar, era uma delas. Filha de um mohel em uma aldeia da Polônia, ela se casa com o misterioso Mêndele, sujeito que foi para a América como menino e voltou homem feito, vestindo terno de casimira listrada. Promete fazer dela “rainha da América”, mas as coisas começam a ficar estranhas durante a viagem. Esther desembarca em Porto Alegre em 1929, onde passa a trabalhar em um bordel. Lá, engravida de um cliente. Seu filho, Marcos, estudará História Natural quando jovem, o que proporciona a metáfora da água, presente sob diversas formas ao longo do romance.

Depois de O Ciclo das Águas, outros romances sul-americanos abordaram o tema, a exemplo de Jovens Polacas (1993), da brasileira Esther Largman, La Polaca (2003), de Myrtha Schalom, e El Infierno Prometido (2006), de Elsa Drucaroff, ambas escritoras argentinas. No Brasil, inspirou também a peça teatral carioca As Polacas – Flores do Lodo (2011), escrita e dirigida por João das Neves, exibida em Porto Alegre em 2013.

E não apenas isso. João Bosco e Aldir Blanc citam as “jovens polacas” na letra da canção O Mestre-Sala dos Mares, que ganhou bela interpretação de Elis Regina em 1974, e o sambista Moreira da Silva compôs Judia Rara para uma polaca que havia sido sua amante: “A rosa não se compara / A essa judia rara / Criada no meu país / Rosa de amor sem espinhos / Diz que são meus seus carinhos / E eu sou um homem feliz”.

Sob o manto da ficção, O Ciclo das Águas revela o fato de as polacas terem sido marginalizadas dentro da comunidade judaica. Tiveram de criar, por exemplo, associações de ajuda mútua para construir suas sinagogas e cemitérios, uma luta pela memória que segue até hoje por meio do trabalho de historiadores e historiadoras. Uma abordagem referencial nesse sentido está no livro Baile de Máscaras (Imago), da pesquisadora Beatriz Kushnir, além de inúmeros estudos que têm sido realizados sobre o tema. O que fica da leitura de O Ciclo das Águas é que Scliar encarnou a literatura como farol que ilumina as grandes questões da sociedade.

FÁBIO PRIKLADNICKI
Jornalista e doutor em Literatura Comparada (UFRGS)