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5 de junho de 2018
Redescobrindo Scliar | “O Exército de Um Homem Só” por Elcio Cornelsen

Doutor em Germanística pela Freie Universität Berlin e professor associado da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Elcio Cornelsen analisa “O Exército de Um Homem Só” nesse novo capítulo da série Redescobrindo Scliar. Boa leitura!

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Em 1973, Moacyr Scliar lançou a obra O exército de um homem só, cujo protagonista, Mayer Guinzburg aliás Capitão Birobidjan sonha em fundar a “Nova Birobidjan” em solo brasileiro, reeditando o projeto de assentamento coletivo de judeus na Rússia. Em termos estéticos, ironia e humor possibilitam a construção de um espaço político utópico, fruto dos devaneios dessa personagem. Porta-voz de um discurso salvacionista, ao estilo da famosa personagem Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, Mayer Guinzburg se revela contrário a ordens instituídas, assumindo, assim, pelo seu caráter contestatório, uma postura “revolucionária”. “Nova Birobidjan”, aos olhos do Capitão, afigura-se como o lócus para abrigar uma sociedade perfeita e, portanto, utópica, a ser almejada.

Portanto, em tempos de franco declínio das grandes “utopias políticas” do século XX, A leitura do romance O exército de um homem só se mostra, deveras, atual. Mayer Guinzburg encerra em si traços quixotescos. Judeu russo que imigrara para a cidade de Porto Alegre ainda menino, o protagonista transforma-se em Capitão Birobidjan, ao decidir erigir em pleno bairro do Bom Fim a “Nova Birobidjan”, fundamentada numa utopia política de caráter socialista. Contrariando o pai, que queria vê-lo tornar-se rabino, Mayer Guinzburg tencionava reeditar em terras gaúchas o projeto levado a cabo na antiga União Soviética, que era, originalmente, o de instalar na Sibéria, às margens dos rios Bira e Bidjan, em 1928, um assentamento para judeus russos, onde estes deveriam manter sua cultura à luz dos ideais revolucionários, mesmo que isso pudesse revelar-se paradoxal.

No romance, temos a seguinte passagem que enfatiza o sentido de tal projeto encampado por Mayer Guinzburg: “Birobidjan. Um dia os judeus do Bom Fim reconheceriam a importância deste nome. Birobidjan: a redenção do povo judeu, o fim das peregrinações. Birobidjan!” Noutras passagens, a utopia política é apresentada como algo futuro, por se realizar, como se fosse imaginada e idealizada enquanto algo passível de ser concretizado. Um exemplo disso é o encontro de Mayer Guinzburg com sua namorada Léia e com seu amigo José Goldman, logo no início do romance, momento em que se prefigura o projeto utópico: “Mayer Guinzburg tem idéias. Formarão uma colônia coletiva, Léia, José Goldman e ele. […] Haverá um mastro, onde flutuará ao vento a bandeira de Nova Birobidjan. Semearão milho e feijão. Tratarão as plantas como amigas, como aliadas no grande empreendimento. Criarão um porco – o Companheiro Porco; uma cabra – a Companheira Cabra; uma galinha – a Companheira Galinha. […]”.

Por sua vez, a busca pela realização da utopia lança a personagem de Scliar a um estado de demência e, ao mesmo tempo, de marginalidade, enquanto ser rebelde e inconformado, que não tem olhos para mais nada além desse espaço idealizado que crê poder erigir, uma espécie de “Terra Prometida”, como fruto da “revolta solitária de um novo messias”, conforme aponta Gilda Salem Szklo, uma das principais estudiosas da obra de Moacyr Scliar.

Portanto, origem, conflito geracional e momento político pré-formatam a personagem que se recusa a aceitar a ordem capitalista instituída, marcada pela exploração e a injustiça, e sonha com uma sociedade utópica, no devir, em que políticas igualitárias seriam adotadas, fazendo com que as mazelas e as desigualdades sociais fossem extintas. Mayer Guinzburg, assim como a famosa personagem de Miguel de Cervantes, corre contra moinhos de vento, fadado a se estatelar em seu projeto messiânico. Se a obra-prima de Cervantes apresenta um estágio de decadência do romance de Cavalaria medieval, podemos entender a personagem de Scliar como representação do declínio das utopias políticas.

Nesse sentido, o humor tem papel decisivo, pois a aparente demência da personagem produz o rizivel, despertado pelo absurdo de sua proposta política utópica. Em tempos de liberalismo selvagem, entretanto, o romantismo ideológico de Mayer Guinzburg parece estar em baixa, soterrado pelo ressentimento classista em sociedades marcadas historicamente pela exploração e desigualdade social. Talvez aqui, extraído de seu discurso perpassado pela crença messiânica de mundos utópicos, tal brado revolucionário do Capitão Birobidjan possa soar deveras atual: “Nada tens a perder, a não ser os teus grilhões!”

ELCIO LOUREIRO CORNELSEN
Doutor em Germanística pela Freie Universität Berlin, Alemanha; Professor Associado IV da Faculdade de Letras da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, atuando nas áreas de Língua e Literatura Alemã (graduação), e de Teoria da Literatura e Literatura Comparada (pós-graduação)