Sobre

O Escritor

Por Regina Zilberman*

“Infância é fundamental e sempre um bom começo para qualquer escritor contar sua história.”

Foto: Lisette Guerra

Foto: Lisette Guerra

Moacyr Jaime Scliar nasceu em Porto Alegre (RS), em 23 de março de 1937. Seus pais, José e Sara, eram europeus que migraram para a América em busca de melhor sorte. Judeus, haviam sido vítimas de perseguições em sua terra natal, e o Brasil se apresentava como nação acolhedora, que de modo amistoso e promissor recebia os que a procuravam.

Ele passou a maior parte da infância no Bom Fim, o bairro porto-alegrense onde se instalou a maioria dos judeus que escolheu a capital do Estado para morar. Foi alfabetizado pela mãe, que era professora primária.

A partir de 1943, cursa a Escola de Educação e Cultura, conhecida como Colégio Iídiche. Em 1948, transfere-se para o Colégio Rosário, concluindo o ensino médio.

Datam deste tempo as primeiras experiências com a literatura. Também por essa época recebe um prêmio literário, o primeiro de muitos que se sucederiam ao longo de sua vida. Mas, profissionalmente, decide-se pela medicina, ingressando na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1955. A medicina constitui igualmente a matéria de seu livro inaugural, Histórias de um médico em formação, de 1962, ano em que concluiu o curso universitário. Doravante, as duas carreiras – a de escritor e a de médico – são percorridas juntas, complementando-se mutuamente.

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Formatura na Faculdade de Medicina da UFRGS e seu primeiro livro publicado: Histórias de um médico em formação / Fotos: Acervo Pessoal

O médico dedicou-se, sobretudo, ao campo da saúde pública, embora atuasse também como professor na Faculdade Católica de Medicina, atualmente Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. A carreira docente iniciou em 1964, e em 1969, a de servidor da Secretaria Estadual da Saúde, onde atuou em campanhas voltadas à erradicação da varíola, da febre amarela e da paralisia infantil, entre outros males que afetavam o bem-estar da população, especialmente a de baixa renda.

Também são de contos os livros que se seguiram: Tempo de espera, editado em parceria com Carlos Stein, de 1964, e O carnaval dos animais, de 1968, obra que julgava superior às precedentes. Com efeito, ali se encontra um contista maduro, consciente das características do gênero a que se dedica e de suas próprias potencialidades. Dentre essas, destacam-se a opção pela literatura fantástica e a escrita de narrativas curtas, antecipando o minimalismo propugnado pela corrente pós-modernista. Observa-se igualmente a introdução de personagens de origem judaica, seja o pensador Karl Marx, ficticiamente aposentado em Porto Alegre, seja o pequeno Joel, que, logo depois, protagonizará A guerra no Bom Fim, quando Moacyr Scliar estreia como romancista.

Na década de 1970, cursou pós-graduação em medicina, em Israel, e também se tornou doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública.

“Fui criado num bairro de intensa vida comunitária, muito judaica, no momento em que nasce uma geração de filhos de imigrantes.”

A guerra no Bom Fim aparece em 1972, importando algumas das características sugeridas em O carnaval dos animais. O alinhamento ao gênero fantástico é plenamente assumido, ao lado da exposição do cenário porto-alegrense, prometido desde o título da obra. Outra promessa de O carnaval dos animais se cumpre: personagens de origem judaica povoam o romance. Só que, de figuras colaterais, transformam-se em atores que centralizam a cena ficcional. O principal, como se observou, é Joel, mas, a seu lado, situam-se sua família, amigos, vizinhos, unidos pela pertença à etnia hebraica, pela procedência, pois migraram da Europa central para o Sul do Brasil, e por residirem no Bom Fim.

Scliar e o time de basquete da ACM, onde costumava jogar / Foto: Acervo pessoal

Scliar e o time de basquete da ACM, onde costumava jogar / Foto: Acervo pessoal

Os conhecimentos originários das atividades associadas à medicina e à saúde pública aparecem em romances e em ensaios. Doutor Miragem, de 1978, conta a trajetória da personagem identificada no título do livro, que, por meio do trabalho escolhido, ambiciona conquistar um lugar elevado na sociedade, alcançado à custa da renúncia aos princípios éticos. Se, com Felipe, o protagonista de Doutor Miragem, Scliar denuncia o pragmatismo de seus pares, com Osvaldo Cruz, figura central de Sonhos tropicais, de 1992, o escritor expõe o lado idealista da profissão, ao narrar a vida do médico dedicado ao combate de doenças coletivas, como a febre amarela e a varíola, no início do século XX brasileiro. Obras de ensaios como Do mágico ao social ou Cenas médicas, ambas de 1987, por sua vez, dão voz ao pensador que reflete sobre a trajetória da Medicina, bem sobre suas práticas, para, em A paixão transformada, mostrar como a literatura traduziu o tema em obras de ficção, atando mais uma vez as pontas de sua vida profissional de duas faces.

É, porém, sua condição de judeu e filho de imigrantes provenientes da Europa que fornece ao escritor o manancial de experiências que fecundam sua obra dos primeiros aos últimos livros.

Moacyr Scliar pertenceu à geração de judeus brasileiros, cujos pais deixaram a Europa nas primeiras décadas do século XX, buscando na América a oportunidade não apenas de progredir social e financeiramente, mas – e sobretudo – de encontrar uma terra acolhedora onde não fossem vítimas do preconceito e do racismo.

Scliar com o filho Beto e a esposa Judith / Foto: Acervo pessoal

O escritor participou, assim, de um grupo de pessoas que compartiu simultaneamente duas situações culturais distintas, mas não necessariamente antagônicas: de uma parte, a de herdeiro da tradição judaica e europeia, caracterizada pela valorização do saber e da escrita, sintetizados na leitura do Pentateuco, fundamento da trajetória hebraica na Antiguidade; de outra, a de brasileiro, participante de uma sociedade assinalada por desigualdades econômicas, mas em permanente transformação em seu esforço de progredir, às vezes generosa, às vezes repressora, porém, inevitavelmente inquieta e movediça.

Dois outros romances, Os deuses de Raquel e O ciclo das águas, de 1975 e 1977, dão continuidade à temática vinculada à representação da vida judaica porto-alegrense. Os deuses de Raquel desloca a personagem para outro bairro da geografia de Porto Alegre, o Partenon, cujo nome, de procedência clássica, só faz salientar as idiossincrasias que a obra destaca, materializadas no comportamento da personagem principal. O ciclo das águas, também transcorrido em Porto Alegre, aprofunda procedimento que tem em A guerra no Bom Fim uma de suas manifestações: a diferença de gerações, opondo os imigrantes, que não perderam suas marcas de origem, aos judeus nascidos no Brasil, que almejam assimilar-se, apagando os sinais que os associam a uma etnia nem sempre festejada.

“Usamos a imaginação para completar as lacunas da vida, prover explicações para coisas que não entendemos, traçar caminhos e entender o passado.”

Foto: Acervo pessoal

Foto: Acervo pessoal

Essa tônica alcança um de seus pontos altos em O centauro no jardim, de 1980. No relato da trajetória de Guedali Tartakovsky, identifica-se o travejamento básico da ficção de Scliar: o uso de elementos fantásticos – no caso, a criação de uma personagem que, sendo centauro, não é menos humano – e a presença da cultura judaica, cindida entre os herdeiros do passado europeu e os adaptados à vida brasileira, empurrados na direção de uma escolha entre uma das situações. Dois outros romances, A estranha nação de Rafael Mendes, de 1983, e Cenas da vida minúscula, de 1991, complementam o ciclo. O primeiro enfatiza o prisma histórico, destacando a participação dos judeus no passado brasileiro, marcado, também em nosso país, por perseguições e dificuldades de adaptação. O segundo recupera aspectos de O centauro no jardim, já que valoriza o enquadramento da narrativa à literatura fantástica; mas, ao importar personagens do Velho Testamento, como o rei Salomão, Scliar abre caminho para o veio, o dos enredos protagonizados por figuras bíblicas, que ocupa os derradeiros dez anos de seu percurso literário.

O ficcionista, contudo, não abandonou o conto, com que abrira sua caminhada de escritor. Em A balada do falso Messias, de 1976, volta ao relato curto, localizando as narrativas, exceção feita à que dá título ao livro, no mundo urbano e contemporâneo. Histórias da terra trêmula, de 1977, O anão no televisor, de 1979, O olho enigmático, de 1986, e A orelha de Van Gogh, de 1989, definem a contribuição de Moacyr Scliar ao gênero, como a mencionada opção pelo minimalismo. Outra de suas marcas é a presença de personagens que fogem à normalidade do cotidiano, apresentando anomalias sintomáticas dos desvios éticos ou psíquicos provocados por uma sociedade violenta e competitiva.

No conto, emerge o crítico da sociedade capitalista, cujas perversidades se materializam no comportamento ou na aparência extravagante dos heróis. A temática judaica passa para segundo plano, evidenciando o pluralismo das vertentes percorridas pelo ficcionista.

Luis Fernando Verissimo, Lya Luft, Moacyr Scliar e Luiz Antonio de Assis Brasil / Foto: Acervo pessoal

Luis Fernando Verissimo, Lya Luft, Moacyr Scliar e Luiz Antonio de Assis Brasil / Foto: Acervo pessoal

O pluralismo mostra-se igualmente quando se observam seus outros romances e novelas, nos quais se podem destacar duas linhas de ação. Em uma delas, Scliar vale-se da experiência como médico e pesquisador da área da saúde para criar personagens emblemáticas de sua profissão.

O ângulo social e militante da medicina mostra-se em outro romance, Sonhos tropicais, de 1992. Focado na trajetória de Osvaldo Cruz, o paladino da luta em prol da vacina contra a febre amarela e a varíola no Rio de Janeiro do começo do século XX, Scliar revela as dificuldades por que passa um profissional idealista. Que o escritor discorria sobre essas questões com conhecimento de causa indicam-no não outros livros de ficção, mas as crônicas publicadas na imprensa de Porto Alegre e os ensaios editados a partir de 1987, reunidos em Do mágico ao social (1987), Cenas médicas (1987) e A paixão transformada (1996).

Foto: Acervo pessoal

Foto: Acervo pessoal

Outra linha de ação da obra de Scliar diz respeito à abordagem de questões políticas, marcadamente as que se destacaram em nossa história. Em Mês de cães danados, de 1977, o ficcionista aborda o episódio conhecido como Legalidade, quando os gaúchos se mobilizaram no sentido de garantir a posse de João Goulart na presidência da República, sucedendo a Jânio Quadros, que renunciara ao cargo. Em Cavalos e obeliscos, de 1981, ele retrocede cronologicamente, para dar conta da participação – outra vez, dos rio-grandenses – na Revolução de 1930. Max e os felinos, do mesmo ano, situa o tema político em contexto geográfico mais amplo, pois o herói do título provém da Europa, deparando-se com a opressão do poder, a que se obriga a enfrentar, enquanto condição de garantir sua identidade. Em A festa no castelo, de 1982, episódios decorrentes do golpe militar de 1964 sugerem o pano de fundo da novela.

Pertence a essa linha de trabalho o último romance que Scliar publicou: Eu vos abraço, milhões, de 2010. Situando a ação nos anos 1930, à época em que Getúlio Vargas chegava ao poder e ao controle do Estado nacional, o ficcionista dá conta da trajetória de uma personagem de esquerda, seduzida inicialmente pela ideologia comunista, mas, aos poucos, desencantada com a burocracia do Partido, as dificuldades de transformar palavras em ação, a inacessibilidade dos dirigentes.

“O conto fala direto à natureza humana e ao desejo de perfeição literária.”

Contos, novelas e romances sugerem que o judaísmo não concentrou a produção integral de Moacyr Scliar. Mas, sem dúvida, as questões vinculadas à etnia hebraica, sua história, tradição e personalidades estiveram presentes em todos os passos de seu caminho. Em Os voluntários, de 1979, é o retorno a Jerusalém, meta sionista de uma das personagens, que move a trama, sendo o insucesso o sinal de que se trata de uma tarefa árdua para todos, judeus e não judeus. Também em A majestade do Xingu (1997) Scliar contrapõe duas personagens, para traduzir dois percursos colocados aos imigrantes judeus: o comércio, limitado e frustrante, corporificado pelo protagonista e narrador, e a militância política, sintetizada nas ações de Noel Nutels, o médico e indigenista que dedicou a vida a seus ideais. Em Na noite do ventre, o diamante, de 2005, também são imigrantes as figuras principais do enredo, pessoas que lutam por sua liberdade, ao buscar escapar da ameaça nazista.

Foto: Acervo pessoal

Foto: Acervo pessoal

Com A mulher que escreveu a Bíblia, de 1999, Os vendilhões do templo, de 2006, e Manual da paixão solitária, de 2008, Scliar afirma sua contribuição definitiva à literatura brasileira de temática judaica. Esses romances constroem-se a partir de personalidades paradigmáticas da Bíblia: Salomão, Jesus e Onam. Mas essas figuras, de passado histórico ou mítico, não protagonizam os enredos; retomando processo narrativo experimentado em Sonhos tropicais e A majestade do Xingu, Scliar apresenta-os de modo colateral, sob o olhar de um outro, muito mais próximo do leitor.

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Em A mulher que escreveu a Bíblia e em Manual da paixão solitária, esse olhar é conduzido por uma mulher; em Os vendilhões do templo, pelo modesto e anônimo mercador de objetos sagrados, cuja mesa fora derrubada pelo Cristo em visita à sinagoga de Jerusalém. O efeito desses encontros, porém, é definitivo, podendo ser, de uma parte, criativo, como ocorre à jovem autora das sagradas escrituras, de outra, devastador, como acontece ao comerciante. Mas nunca é indiferente, facultando a Scliar refletir sobre as consequências de atos de indivíduos de alguma grandeza sobre as pessoas comuns, que, diante dos marcos históricos, nem sempre sabem como reagir.

Além de patentear o pluralismo e a diversidade de sua escrita, Scliar dedicou-se a múltiplos gêneros. Contos, romances, novelas e ensaios enfileiram-se ao lado da crônica, exemplificada por A massagista japonesa, de 1984, ou da experiência com quadrinhos, como em Pega pra Kaputt! de 1977, redação dividida com Josué Guimarães, Luis Fernando Verissimo e Edgar Vasques. Ele responsabilizou-se também por um número significativo de livros dedicados a crianças e jovens, alguns de cunho memorialista (Memórias de um aprendiz de escritor, de 1984), outros de orientação histórica (Os Cavalos da República, de 1989; O Rio Grande Farroupilha, de 1993), sem esquecer as adaptações de clássicos brasileiros (Câmera na mão, o guarani no coração, de 1998; O mistério da casa verde, de 2000; O sertão vai virar mar, de 2002). A maioria, porém, originou-se de sua imaginação, permitindo-lhe a interlocução com o leitor adolescente, que se deleita com O tio que flutuava, de 1988, Uma história só pra mim, de 1994, ou O irmão que veio de longe, de 2002, entre tantas histórias ricas de fantasia e entretenimento.

“Penso no leitor que eu fui em minha juventude e que procurava nos livros prazer, encanto e respostas para os problemas da vida. Espero que os leitores encontrem a mesma coisa em meus livros.”

Foto: Acervo pessoal

Foto: Acervo pessoal

A literatura infanto-juvenil consta igualmente dos gêneros literários a que Scliar se dedicou. Na maioria de seus livros, os protagonistas vivenciam situações existenciais decisivas para sua formação: as crianças almejam alcançar o afeto de pais e irmãos; os adolescentes buscam auto-afirmação e fortalecimento da identidade. Porque deseja que o leitor se identifique com a personagem, com quem aprende a entender as próprias aspirações, Moacyr Scliar cria figuras ficcionais que compartilham a faixa etária dos destinatários.

Além disso, a personalidade deles mostra-se bem definida, o que não impede de expressarem problemas, de que nem sempre estão muito conscientes, até esses se evidenciarem e serem solucionados, em parte por iniciativa do herói, em parte graças a generosidade de algum adulto solidário (pai, tio, amigo da família, professor).

Scliar conquistou diversos prêmios literários, como, por exemplo: três prêmios Jabuti (nas categorias “romance” e “contos, crônicas e novelas”); o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, em 1989, na categoria “literatura”; e o Casa de las Americas, em 1989, na categoria “conto”. Seus livros foram traduzidos em inúmeros países, como Inglaterra, Rússia, República Tcheca, Eslováquia, Suécia, Noruega, França, Alemanha, Estados Unidos, Holanda, Espanha, entre outros.

Em 1993 e 1997, foi professor visitante na Brown University e na Universidade do Texas, ambas nos EUA.

Depois de sofrer, em janeiro de 2011, um acidente vascular cerebral isquêmico (AVC), Moacyr Scliar faleceu no dia 27 de fevereiro. Segundo seu editor, Luiz Schwarcz “tinha um olhar único, com ele criava um mundo fantástico no qual o humano estava sempre a serviço da literatura”.

Foto: Acervo pessoal

Foto: Acervo pessoal

Moacyr escreveu para os jornais Zero Hora e Folha de São Paulo, teve livros adaptados para o cinema e, em 2003, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Na opinião do escritor Luiz Antônio Assis Brasil, “cada leitor da obra de Scliar tem seu gênero preferido. Mas todos reconhecem nele, acima de tudo, seja na ficção, no ensaio ou na crônica, um estilo altamente humanista, que o torna dono de valores universais”.

» Leia o discurso de posse de Moacyr Scliar no site da Academia Brasileira de Letras

Experiente no trato da literatura, assim como fora na cura de seus pacientes e na abordagem dos assuntos da saúde, Moacyr Scliar é autor para os jovens amarem, e todos admirarem.


* Doutora em Romanística pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha.
Atualmente é professora adjunta do Instituto de Letras, da UFRGS, com atuação no Programa de Pós-Graduação em Letras.