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22 de abril de 2017
Regina Zilberman: “Moacyr Scliar, intelectual judeu”

Novo livro reúne crônicas em que o escritor reflete sobre a identidade judaica como parte da condição humana, tema abordado por ele ao longo de toda a sua carreira, na imprensa, no ensaio e na ficção

Por: Regina Zilberman

Scliar (1937-2011) em sua casa, em 2003 – Foto: Adriana Franciosi / Agencia RBS

Nunca foi muito fácil falar dos judeus, mesmo entre eles, e por várias razões: trata-se de uma nação que, formada na Antiguidade, não renunciou aos vínculos com esse passado distante; os judeus são os responsáveis pela Bíblia hebraica, obra que, ao lado de epopeias como a Ilíada e a Odisseia, fundou a cultura ocidental e inspirou sua gêmea fraterna, a Bíblia cristã; aquele povo sofreu perseguições religiosas e étnicas desde os primeiros séculos da era cristã que, se não foram contínuas, ameaçaram sua sobrevivência; além disso, foi expulso de sua pátria, mas nunca deixou de aspirar o retorno à Terra Santa, manifestando esse anseio desde as lamentações do profeta Jeremias até a redação por Theodor Herzl, de O Estado Judeu, concretizando-o, enfim, por sobre — e talvez por causa de — as ruínas deixadas pela Segunda Guerra.

Nem sempre os próprios judeus gostam de falar do assunto, seja porque sofreram os traumas do antissemitismo e do holocausto, seja porque são objetos de blague, seja porque se sentem constrangidos ou intimidados. Judaísmo é, mas esperemos que não para sempre, um tema espinhoso, e poucos percebem-se efetivamente habilitados a manifestar-se sobre ele.

Pois Moacyr Scliar é o escritor que, desde o começo de sua trajetória enquanto ficcionista e ensaísta, optou por abordar frontalmente, porém de modo sereno e maduro, a questão do judaísmo. Quando publicou O Carnaval dos Animais, em 1968, e, pouco depois, A Guerra no Bom Fim, em 1972, ele tinha pouco mais de trinta anos, mas a juventude não o impediu de criar o primeiro protagonista judeu do romance brasileiro e a discutir assuntos que feriam a sensibilidade de seu público, como o Nazismo ou o antissemitismo.

Por outro lado, procurou incluir problemas não propriamente judaicos, como a renúncia aos ideais, o comodismo, o fracasso existencial, mas que também lhes diziam respeito, porque relativos à sociedade brasileira a que pertenciam. A Guerra no Bom Fim é, na sua versão de 1972, depois alterada pelo autor, um livro tão corajoso, que discute mesmo a questão dos palestinos e a sedução do terrorismo, quando o assunto era incômodo para os habitantes da região, mas não afligia os demais, como se passa em nossos dias.

As crônicas de A Nossa Frágil Condição Humana recuperam essa trajetória percorrida pelo escritor desde o começo de sua carreira literária. Elas foram publicadas originalmente em Zero Hora, entre 1977 e 2010, aparecendo nos diferentes espaços que o jornal lhe reservava: o Segundo Caderno, a coluna Opinião, a Revista ZH, o suplemento dominical Donna, a crônica semanal das terças-feiras no Informe Especial. Nenhum desses espaços tinha um temário específico, e Scliar preenchia-os com tópicos variados, respondendo em algumas circunstâncias a pautas suscitadas por acontecimentos que requeriam sua expertise, como saúde pública ou literatura. Entre os tópicos que dominava, constavam as matérias relacionadas ao judaísmo, que incluíam episódios e líderes políticos do Oriente Médio, retrospectivas históricas, atividades culturais, memória, comentários.

No filme Negação (Denial), uma das perguntas propostas pela trama diz respeito ao posicionamento do intelectual ou do homem de letras, seja ele historiador ou cronista, perante acontecimentos do passado ou do presente: deve ele seguir sua opinião, ajustando a qualquer custo os fatos às suas ideias? Ou buscar o significado dos eventos, considerando-os mais importantes que suas convicções particulares ou ideais? Assim sintetizado o dilema, a segunda alternativa parece a mais indicada; porém, não é sempre que essa situação prevalece. As pessoas, incluídos aí historiadores, escritores e pensadores, muitas vezes preferem ater-se a conceitos previamente formulados, deixando de lado o que contraria aqueles juízos.

As crônicas de Moacyr Scliar reunidas em A Nossa Frágil Condição Humana são exemplo candente da alternativa correta, decorrente da atitude que opta, primeiro, por examinar o caso e, depois, julgá-lo, ainda que nem sempre o posicionamento enunciado se mostre agradável ou simpático a si mesmo ou a outros. E isso que o escritor lida com uma matéria bastante sensível — o judaísmo, tema agudizado no século 20 após a revelação dos crimes do Nazismo, da fundação do Estado de Israel e dos conflitos entre árabes e israelis.

A variedade da pauta não significa que Scliar detivesse um conhecimento genérico ou fosse superficial ao abordar os conteúdos propostos. Pelo contrário, ele se mostrou invariavelmente um especialista, bem informado e profundo, expondo-os, graças a seu talento, em linguagem atraente e acessível aos leitores. Adveio dessas virtudes a necessidade de republicar as crônicas, agora reunidas sob uma rubrica, a do judaísmo, pois é o que as aproxima, e dirigidas a uma audiência mais ampla, porque registradas em livro.

A frágil condição humana é a dos judeus, mas é também a de todos nós, seres precários que habitamos esse planeta. A palavra de Scliar, em suas crônicas, certamente colabora para que a árdua travessia de cada um possa ser mais serena, porque acompanhada pela sabedoria de um intelectual capaz de se posicionar perante os fatos sem submetê-los a conceitos prévios, ensinando-nos a assim também proceder.

Fonte: Zero Hora