Coletânea de crônicas sobre medicina do escritor gaúcho foi lançada com debate, no Auditório da Amrigs
J.J. CAMARGO*
Passados dois anos e meio da sua morte, Moacyr Scliar continua presente e ativo na vida dos que tiveram o privilégio da proximidade. Plural e camaleônico, encantou os que conviveram com sua inquietude intelectual e conquistou adeptos na medicina, no romance, no ensaio, na crônica e na ficção.
Difícil dizer onde foi mais brilhante, impossível deixar de reconhecer que além da voracidade intelectual, era movido por uma energia ímpar, que o transformou numa incomparável usina de ideia, marcadas pela genialidade e pela premonição. O paralelismo de suas atividades como médico e literato criou este ser híbrido que seguirá encantando gerações, incapazes de distinguir com precisão onde se encerra o exercício da medicina e começa a provocação da crônica ou o deslumbramento da ficção.
Como grande pensador, anteviu as dificuldades da medicina moderna, que se tornou mais técnica e fria, e foi um dos primeros a recomendar a disciplina de Humanidades Médicas no currículo das nossas faculdades, como uma maneira de recuperar o velho glamour. Porque, para ele, literatura e medicina sempre foram compratimentos da mesma cultura. E se submeter às exigências de uma é um filão inesgotável para o enriquecimento da outra.
Por tudo isso, a iniciativa de reunir as principais crônicas dos últimos 16 anos de sua vida (de 1995 a 2011, no Caderno Vida, de Zero Hora), relacionadas com a saúde, do corpo e da alma, muito da alma, neste Território da Emoção, que a Companhia das Letras nos oferece, tem que ser festejada.
A seleção do material a cargo da professora Regina Zilberman é preciosa. A divisão em seis blocos contempla tópicos nominalmente estanques, como sugerem os títulos: Literatura e Medicina, Histórias de Médicos, Memórias de um Médico, Nosso Corpo, Males que nos Afligem e Comportamentos. Mas não, os temas interagem e, em todos, extravasa a sensibilidade, a sutileza, o humor requintado e o primor de uma narrativa enxuta e concisa, que ele próprio reconheceu como resultante de sua experiência como relator de trabalhos científicos.
E assim, com uma precisão cirúrgica, ele nos comove com suas experiências como estudante universitário descobrindo os meandros da nova profissão, nos encanta com o relato das descobertas médicas ao longo da história, nos fascina com a descrição dos medos e das fantasias que caracterizam o frágil ser humano ameaçado de morte.
Quando descreve nosso corpo, se apossa dele como um poeta, e assim magnetizado de lirismo, fala da dor como um pedido de socorro do nosso organismo e, discutindo o significado da expressão “pessoa invertebrada” como sinônimo de escória ética, atribui aos nossos ossos uma certa dignidade, pelo menos a alguns deles. E então reverencia a coluna vertebral como sustentáculo físico e exemplo da nossa inflexibilidade moral.
O relato de suas vivências médicas deslumbra, porque ele nunca conseguiu separar a atividade clínica, que o fascinava, do viés literário, que o seduzia.
A coletânea agora lançada é o produto requintado de um observador atento das transformações contemporâneas impostas à relação médico/paciente, e traz fragmentos preciosos da vida extraordinária de quem foi autor e personagem, cúmplice e testemunha, e com uma convicção definitiva: a trajetória do homem é o mais rico manancial de todas as artes.
Moacyr Scliar, que já foi definido como um realista mágico, um criador de atmosferas e um domador do fantástico, está de volta. Com cem crônicas que mostram a essência do médico com uma visão holística, social e humanitária.
E ele está à sua espera!
* Cirurgião, presidente da Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina e colunista do caderno Vida, que participa do debate que será realizado hoje no lançamento do livro
TERRITÓRIO DA EMOÇÃO
Lançamento do livro com crônicas de Moacyr Scliar (Companhia das Letras, 280 páginas, R$ 36), organizado por Regina Zilberman. O evento contará com leitura dramática de crônicas pela atriz Mirna Spritzer e uma mesa-redonda sobre a relação médico-paciente com os médicos J.J. Camargo e Sérgio de Paula Ramos e o escritor Luis Fernando Verissimo.
Entrada franca. Auditório do Centro de Eventos do Amrigs (Ipiranga, 5.311). Hoje às 20h.
Fonte: Zero Hora – Segundo Caderno (10/07/2013)