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31 de maio de 2015
Clube de Cultura completa 65 anos buscando se manter à altura da própria história

Reportagem de Zero Hora aborda os 65 anos de fundação do Clube de Cultura e a inspiração na obra de Moacyr Scliar. O Capitão Birobidjan é o personagem principal do já clássico O Exército de um Homem Só, de Scliar. Corajoso, solitário e utópico, Birobidjan é uma fantasia inspirada em Henrique Scliar, o “tio Henrique” do escritor. No mundo fantástico da literatura, o Capitão almejava construir um Palácio da Cultura. No mundo real, e por que não fantástico da Porto Alegre dos anos 1950, Henrique Scliar foi o idealizador e um dos fundadores do Clube de Cultura.

Espaço no Bom-Fim mantém-se na ativa, mesmo necessitando de apoio para tocar reformas e projetos

Por: Airan Milititsky Aguiar * e Rafael Kruter Flores **

Grupo de teatro do Clube de Cultura debate a montagem dos textos de Qorpo Santo em 1966: trupe foi premiada pelo trabalho. Foto: Clude de Cultura / Divulgação

Grupo de teatro do Clube de Cultura debate a montagem dos textos de Qorpo Santo em 1966: trupe foi premiada pelo trabalho. Foto: Clude de Cultura / Divulgação

 Mestre em História pela PUCRS e presidente do Clube de Cultura
** Secretário do Clube de Cultura

Capitão Birobidjan é o personagem principal do já clássico O Exército de um Homem Só, de Moacyr Scliar. Corajoso, solitário e utópico, o Capitão Birobidjan é uma fantasia inspirada em Henrique Scliar, o “tio Henrique” do escritor. No mundo fantástico de Scliar, o Capitão almejava construir um Palácio da Cultura. No mundo real, e por que não fantástico da Porto Alegre dos anos 1950, Henrique Scliar foi o idealizador e um dos fundadores do Clube de Cultura.

O Clube de Cultura foi fundado em 30 de maio de 1950 por 14 judeus progressistas, determinados a criar um espaço para atividades artístico-culturais que não encontravam acolhida nos lugares já consagrados da cidade. A atual sede, no número 1.853 da Rua Ramiro Barcelos, foi inaugurada em 1958.

Nos anos 1950, realizaram palestras e exposições no Clube nomes como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Aparício Torelli (o Barão de Itararé), Carlos Scliar, Danúbio Gonçalves e Vasco Prado. Naquela época, grupos de teatro judaico-progressistas de países e Estados vizinhos realizaram apresentações em ídiche.

A comemoração do aniversário, em 1961, contou com a participação de Elis Regina. O Centro Popular de Cultura da UNE apresentou o Auto dos 99%, texto que embalava as discussões sobre a reforma do ensino superior. Fez-se presente também o Teatro de Arena com a peça Revolução na América do Sul, de Augusto Boal, bem como com palestras de Vianinha.

A sétima arte não ficou de fora. O memorável Clube de Cinema de Porto Alegre somou P. F. Gastal a Jacob Koutzii. A tradição do canto popular, vinda do Leste Europeu, foi consagrada na regência do coral por Esther Scliar.

Em 1962, o Clube de Cultura, então restrito a membros da comunidade judaica, abriu suas portas à comunidade mais ampla. O grupo de teatro do Clube encenou A Prostituta Respeitosa, de Sartre. Nos embalos do novo ritmo brasileiro, organizou o espetáculo Bossa 64.

Com o advento do golpe militar, o Clube perdeu muitos membros, mas se manteve ativo tendo à frente, além de Henrique Scliar, Hans Baumann, André Paulo Franck e Salomão Schwartz. O símbolo da resistência era erguido mais uma vez, denunciando o regime de exceção. Apesar de todas as adversidades oriundas da repressão, a vida do Clube se manteve intensa. Especial destaque para a montagem teatral dos “redescobertos” textos de Qorpo Santo. O Grupo de Teatro do Clube de Cultura recebeu prêmios por essa montagem, inédita, e consagrou Qorpo Santo como um expoente da literatura brasileira.

Ainda nos anos 60, a Frente Gaúcha de Música Popular, formada por Raul Ellwanger, Edgar Pozzer, Cezar e Paulo Dorfman, Cláudio Levitan, entre outros, buscava romper as cadeias da indústria cultural.

Nos anos 70, Carlos Gerbase e Jorge Furtado organizaram oficinas de cinema. Nos anos 80, a Cooperativa de Música de Porto Alegre – Coompor – badalou o Bom Fim com o projeto Coompor Canta Lupi. Dali saíram grandes nomes da cena local como Nelson Coelho de Castro, Bebeto Alves e Gelson de Oliveira. Caio Fernando Abreu, Luciano Alabarse e Carlinhos Hartlieb montavam e estreavam os textos de Caio no auditório Henrique Scliar. Nele estreou Nei Lisboa.

O Auditório Henrique Scliar, homenagem em vida a um dos idealizadores do Clube, não está mais em condições de receber grandes eventos culturais. O Palácio do Capitão necessita ser reformado. Mesmo assim, mantém suas portas abertas realizando atividades como saraus, palestras, cursos, debates, apresentações musicais e de cinema. Além disso, funciona de segunda a sábado o Restaurante Midbar, com gastronomia inspirada no Oriente Médio.

Um dos projetos para o futuro é a organização de uma biblioteca. O Clube conta com um acervo importante de seus antigos membros e doações diversas. O acervo deverá ser catalogado e disponibilizado em uma biblioteca que funcionará também como sala de leitura e estudos. Outro projeto que anima os atuais membros da entidade é a reedição da Kinderland (em ídiche, mundo da criança). A ideia é equipar uma sala para criar um espaço de convívio para crianças.

Mas o mais importante e fundamental projeto é a reforma do Auditório Henrique Scliar. Palco de grandes acontecimentos culturais da cidade, o espaço tem enorme potencial de uso para a cultura local, mas está desativado. Para tanto, a diretoria do Clube vem tentando viabilizar financiamento via lei de incentivo e parcerias.

Neste 30 de maio, o Clube completa 65 anos de existência. Com períodos de mais ou menos intensidade e de diferentes formas de inserção na vida cultural da cidade, o Clube de Cultura resiste, há 65 anos, por sua capacidade de reinventar-se. Reinventa-se, mas mantém o propósito que animou seus fundadores: abrir espaço para atividades culturais que não encontram acolhida nos espaços convencionais de cultura da cidade. É um lugar de utopias, esperança e cultura.

O Clube de Cultura está vivo e resiste, no coração do Bom Fim. Assim como o Capitão Birobidjan.

Fonte: Zero Hora