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19 de março de 2013
Lançamento da coletânea “Território da Emoção”

lancamento-territorio-emocaoEsta coletânea de crônicas dá sequência ao projeto da Companhia das Letras de publicar uma amostra significativa das crônicas escritas por Moacyr Scliar ao longo de mais de trinta anos de colaboração com o jornal Zero Hora, de Porto Alegre.

A literatura e a medicina são dois eixos constantes na imaginação de Scliar: incansavelmente, o escritor – ele próprio médico sanitarista – voltou aos temas que o apaixonavam. Em sua concepção, ambos estão vinculados pela palavra. Assim, nestas crônicas desfilam médicos escritores (dos primórdios de Galeno e Vesálio até Thomas Mann, Tolstói e Molière); recordações dos anos de estudante na faculdade de medicina em Porto Alegre; histórias da prática médica; escritores doentes e o modo como lidaram com as próprias limitações físicas; escritores que escreveram sobre medicina… E ainda, numa outra vertente, questões políticas e éticas, como a colaboração de alguns médicos com a ditadura, tanto no Brasil como em outros regimes autoritários.

O humor de Scliar funciona mais no registro da malícia que no da ironia; é ele o responsável pela leveza encantadora dessas crônicas, que não se furtam à gravidade de muitas das questões que abordam, a começar pela maior delas, âmago tanto da literatura como da medicina. Para o escritor, a medicina opera “pequenas ressurreições” diante do “aguilhão da morte”. “A última palavra é a da Morte. Mas enquanto ela não chega a medicina tem muito a dizer.” E a literatura também.

 

PREFÁCIO: LEITURA PRAZEROSA SOBRE A SAÚDE de Regina Zilberman (trechos)

Quando optou pela Medicina, em 1955, Moacyr Scliar já tinha redigido alguns contos, e até sido premiado por um deles, episódio de sua juventude que gostava de relatar a seus leitores e ouvintes. Contudo, as duas carreiras – a de médico e a de escritor – foram inauguradas ao mesmo tempo: em 1962, ano em que concluiu a faculdade e publicou as Histórias de médico em formação, cujo conteúdo é fornecido sobretudo por suas experiências na sala de aula, ambulatórios e hospitais públicos.

Não é ainda nessa fase que começa a elaborar textos sobre sua atividade profissional. Pelo contrário, as obras subsequentes, como os contos deCarnaval dos animais, de 1968, e o romance A guerra no Bom Fim, de 1972, registram acontecimentos nos quais predominam a imaginação e o fantástico, mesmo quando se mesclam a fatos importados da memória da infância, transcorridos em Porto Alegre.

Não que o escritor tivesse se afastado muito da área da saúde: Joel, de A guerra no Bom Fim, é dentista. Mas é em Doutor Miragem, de 1978, que Scliar volta a sintonizar literatura e medicina, título da crônica que abre esta seleção, retomando ao mesmo tempo um filão temático de que era admirador, o da ficção que confere protagonismo ao “doutor”, como em Olhai os lírios do campo, de Erico Verissimo, ou A Peste, de Albert Camus.

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Ao assumir a permanente titularidade da coluna A Cena Médica, Moacyr Scliar não é mais o novato das Histórias de médico em formação, e sim o profundo conhecedor da matéria sobre a qual se pronuncia para um público interessado e já admirador do escritor nacional e internacionalmente premiado.

Por sua vez, o escritor elege a crônica enquanto instrumento de diálogo com o leitor. A opção poderia parecer natural, porque Scliar era então um cronista maduro e prestigiado. Mas ele poderia ter preferido a reportagem, o ensaio, o artigo científico, alternativas viáveis dentre o leque aberto, de uma parte, a um jornalista, já que há algum tempo participava ativamente de um periódico diário, ou a um cientista, posição também aplicável a ele enquanto professor de uma instituição de ensino superior.

A crônica aparece, pois, como resultado de uma decisão consciente e deliberada, não apenas porque o escritor era um mestre do gênero, mas provavelmente porque ele sabia que se tratava da maneira mais amável para se dirigir ao leitor, a que esse aceitaria de forma amistosa. A eleição da crônica representa, para Scliar, pois, o modo como, enquanto médico, pode se comunicar mais eficazmente com o leitor, leigo, mas que, mesmo diante de temas técnicos e especializados, aprecia ser abordado de igual para igual.

Dito de outra maneira, as crônicas médicas mimetizam, por escrito, a relação médico-paciente. Esta, seguidamente, é mediada pela oralidade, mas, no âmbito do impresso, cabia escolher outro caminho, e é essa a decisão tomada pelo autor. Assim, ele tem condições de estender-se sobre questões espinhosas ou problemas do cotidiano, matérias polêmicas ou novidades científicas, de modo aparentemente leve, porque fácil de entender, sem comprometer o rigor e a exatidão com que as informações são transmitidas.

À validade do teor científico é preciso adicionar a qualidade literária das crônicas. Nas cenas médicas originais, Scliar pratica o mesmo cuidado formal encontrável em suas narrativas e ensaios. Ao facilitar a compreensão dos problemas de saúde, as possibilidades de cura, as atitudes a tomar diante de temas em voga, ele não banaliza a linguagem, nem incide em vulgaridade, valendo-se da propriedade que constitui uma das marcas mais notáveis de sua prosa: a simplicidade.

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As crônicas selecionadas cobrem um arco de tempo que se estende de 1995 a 2011. “Humores e hormônios” foi o último texto escrito para a coluna A Cena Médica, tendo sido publicado postumamente. Entre a primeira e a última, aproximadamente setecentos textos foram redigidos, dentre os quais 94 aparecem neste livro, subdivididos em seis grupos, consoante sua matéria. No interior de cada um dos grupos, as crônicas alinham-se em ordem cronológica, considerando o período de dezesseis anos durante os quais Scliar participou do Caderno Vida, de Zero Hora, de Porto Alegre.

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Pode-se observar que a opção pela simplicidade na condução da linguagem das crônicas corresponde ao desejo de esclarecer o público. Esta é a atitude adotada pelo autor do primeiro ao último texto, porque seu intuito é antes de tudo pedagógico. Scliar está ciente de que o destinatário precisa conhecer o problema, para prevenir-se adequadamente, no que diz respeito tanto à saúde física e mental, quanto a um posicionamento diante de seu grupo e da sociedade.

Optar por esclarecer a audiência não significa prescrever atitudes ou impor decisões. Pelo contrário, o que o cronista almeja é contar com a aprovação do leitor, cuja adesão às ideias expostas é condição imprescindível para mudanças não apenas em sua vida pessoal, mas também na coletividade, em busca de uma sociedade sadia.

Constrói-se, assim, um pacto entre dois seres humanos, em condições de igualdade e parceria, para que possam, ambos, desfrutar desse “território da emoção” em que convivem a medicina e a literatura, a saúde e o prazer.

Regina Zilberman