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15 de setembro de 2014
Obra de Moacyr Scliar conjugou quantidade com qualidade

por Regina Zilberman*

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Autor caracterizou sua atuação por disciplina, rigor e criatividade, deixando como legado oito dezenas de livros e uma infinidade de artigos

* Professora do Instituto de Letras da UFRGS

Moacyr Scliar parecia ser um homem incansável, haja vista sua fenomenal e contínua produção literária, partilhada com o exercício da medicina e do magistério. Construiu, assim, uma obra em que se identificam pelo menos 20 narrativas longas, entre romances e novelas, e cerca de oito coletâneas de contos, a que se acrescentam livros de crônica, histórias para crianças e jovens, e ensaios. Ele só não praticou a poesia, já que um romance seu, A Mulher que Escreveu a Bíblia, pôde ser apresentado como peça de teatro.

Tal fecundidade não excluiu a qualidade, pois Scliar foi daqueles autores em que, a exemplo de Machado de Assis, a quantidade não prejudicava seu valor. Ele escreveu muito, e sempre escreveu bem, em parte em razão de seu talento, em parte em razão de seu enorme respeito pelo leitor.

Foi com o romance e o conto que Scliar ocupou seu lugar na literatura brasileira. Nos primeiros livros dedicou-se ao conto, sendo o lançamento de O Carnaval dos Animais, em 1968, um marco em sua trajetória. Quatro anos depois, com A Guerra no Bom Fim, inaugurou o percurso de romancista, que se acelerou durante os anos 1970, pois, em menos de 10 anos, produziu seis outras narrativas longas. A partir daí, o ritmo abrandou, até porque o investimento em obras como A Estranha Nação de Rafael Mendes, de 1983, e Cenas da Vida Minúscula, de 1991, tomou muito de seu tempo, consumido com pesquisa, reflexões e reescritas. A essas alturas, Scliar já tinha lançado O Centauro no Jardim (1980), ponto de chegada de sua interpretação, de um lado, do processo de transplante da cultura judaica para o Brasil, de outro, da formação nacional, calcada no hibridismo étnico e na aspiração à ascensão social.

Por isso, o escritor percebeu que era o momento de se reinventar, o que o levou a mergulhar na história – A Estranha Nação de Rafael Mendes – e na mitologia hebraica – Cenas da Vida Minúscula, um de seus melhores romances, em que combina personagens bíblicos, fantasia e sociedade brasileira de modo criativo e atraente, evidenciando, assim, que ser pós-moderno não significa fechar-se no hermetismo ou ignorar o gosto do público. Mais uma vez talento e respeito pelo leitor amalgaram-se para dar vida a personagens notáveis da literatura brasileira.

Aos poucos, porém, Scliar abandona o conto. Após o premiado A Orelha de Van Gogh (1989), lança apenas o minimalista O Amante da Madonna (1997). Em entrevista ao periódico eletrônico WebMosaica (seer.ufrgs.br/webmosaica), explica a razão dessa mudança do rumo: “Em parte, porque segui a trajetória comum a muitos escritores, pelo menos no Brasil: começamos pelo conto, depois vamos para a ficção mais longa. Existe aí um componente de maturidade emocional.”

Pode-se acrescentar a essa declaração: Scliar ainda tinha muito para dizer, em termos de romance. Com Sonhos Tropicais (1992), transporta para a ficção sua admiração por Oswaldo Cruz, e com A Majestade do Xingu (1997), a obsessão por Noel Nutels, o médico de origem judaica que se entranhou na Amazônia atuando junto ao Serviço de Proteção ao Índio (hoje Funai), dando conta mais uma vez das mesclas multiculturais que compõem a nação brasileira.

Para muitos estudiosos de sua obra, A Majestade do Xingu é o melhor romance de Scliar, escolha questionável, porque o escritor não tinha esgotado suas potencialidades criativas. Assim, outra volta no parafuso leva-o a retornar, não, porém, de modo idêntico, a temas da tradição judaica, associados ou não à vida nacional. A Mulher que Escreveu a Bíblia abre o novo ciclo, reiterando personagens de livros anteriores, como o rei Salomão, apresentado, porém, desde a perspectiva da figura feminina que teria redigido o livro sagrado dos judeus e agora redige o romance que lemos. Scliar coloca-se na perspectiva da mulher e, através dela, compartilha a fundação da tradição hebraica escrita e religiosa. Mas não se satisfaz com isso: em Os Vendilhões do Templo, outro de seus romances de leitura imprescindível, examina o passado judaico-cristão desde o foco dos amaldiçoados: o comerciante que o Nazareno expulsa do templo – um espaço sagrado – de Jerusalém; e o judeu errante, símbolo da diáspora a que o povo de Israel foi condenado por muitos séculos.

Na entrevista citada, Scliar comenta que a redação de Os Vendilhões do Templotomou dezesseis anos, “desde a ideia inicial até a conclusão: reescrevi muitas vezes.” Valeu a pena, diremos nós. Porque a quantidade não exclui a qualidade, mas essa é alcançada graças à dedicação do escritor a seu ofício, a maturidade e consciência de seus limites, como ele confessa: “períodos de rapidez se alternam com outros de muita lentidão, resultante de dúvidas que vão desde a questão do foco narrativo até a incerteza quanto à validade do projeto (não foram poucos os que abandonei).” Eis um testemunho e um legado inestimáveis para a literatura e seus aficionados – escritores, leitores e críticos.