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13 de dezembro de 2020
Quatro contos de Moacyr Scliar em homenagem ao espírito natalino

Foram vários os contos que Moacyr Scliar escreveu em homenagem ao espírito natalino. Alguns foram originalmente publicados no jornal Folha de S. Paulo, onde Scliar assinava uma coluna criada a partir de acontecimentos reais. Já outros integram coletâneas e livros como “Mamãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar”, de 1996, destinado ao público infanto-juvenil. Antecipando as festividades natalinas, selecionamos quatro destes contos para compartilhar com vocês neste mês de dezembro. Boa leitura!

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MENSAGEM DE NATAL

* Publicado no Jornal Folha de S. Paulo, em 24 dezembro de 2007

Um cartão do Natal com um desenho colorido de Papai Noel e uma menina, postado em 1914, acaba de chegar a seu destino na cidade americana de Oberlin, no Estado de Kansas, depois de ficar extraviado durante 93 anos. O cartão, datado de 23 de dezembro de 1914, tinha sido enviado a Ethel Martin, de Oberlin. Ethel Martin nunca chegou a ler a mensagem de Natal. Ela morreu antes de receber o cartão.

“Para ele, o fim do ano era sempre uma época dura, difícil de suportar. Sofria daquele tipo de tristeza mórbida que acomete algumas pessoas nos festejos de Natal e de Ano Novo. No seu caso havia uma razão óbvia para isso: aos 70 anos, solteirão, sem parentes, sem amigos, não tinha com quem celebrar, ninguém o convidava para festa alguma. O jeito era tomar um porre, e era o que fazia, mas o resultado era melancólico: além da solidão, tinha de suportar a ressaca.

No passado, convivera muito tempo com a mãe. Filho único, sentia-se obrigado a cuidar da velhinha que cedo enviuvara. Não se tratava de tarefa fácil: como ele, a mãe era uma mulher amargurada. Contra a sua vontade, tinha casado, em 31 de dezembro de 1914 (o ano em que começou a Grande Guerra, como ela fazia questão de lembrar) com um homem de quem não gostava, mas que pais e familiares achavam um bom partido. Resultado desse matrimônio: um filho e longos anos de sofrimento e frustração.

O filho tinha de ouvir suas constantes e ressentidas queixas. Coisa que suportava estoicamente; não deixou, contudo, de sentir certo alívio quando de seu falecimento, em 1984. Este alívio resultou em culpa, uma culpa que retornava a cada Natal. Porque a mãe falecera exatamente na noite de Natal. Na véspera, no hospital, ela lhe fizera uma confissão surpreendente: muito jovem, apaixonara-se por um primo, que acabou se transformando no grande amor de sua vida. Mas a família do primo mudara-se, e ela nunca mais tivera notícias dele. Nunca recebera uma carta, uma mensagem, nada. Nem ao menos um cartão de Natal.

No dia 24 pela manhã ele encontrou um envelope na carta do correio. Como em geral não recebia correspondência alguma, foi com alguma estranheza abriu o envelope. Era um cartão de Natal, e tinha a falecida mãe como destinatária. Um velhíssimo cartão, uma coisa muito antiga, amarelada pelo tempo. De um lado, um desenho do Papai Noel sorrindo para uma menina. Do outro lado, a data: 23 de dezembro de 1914. E uma única frase: “Eu te amo”.

A assinatura era ilegível, mas ele sabia quem era o remetente: o primo, claro. O primo por quem a mãe se apaixonara, e que, por meio daquele cartão, quisera associar o Natal a uma mensagem de amor. Uma nova vida era o que estava prometendo. Esta mensagem e esta promessa jamais tinham chegado a seu destino. Mas de algum modo o recado chegara a ele. Por quê? Que secreto desígnio haveria atrás daquilo?

Cartão na mão, aproximou-se da janela. Ali, parada sob o poste de iluminação, estava uma mulher já madura, modestamente vestida. Hesitou um instante e depois precipitou-se para fora. Tinha uma mensagem a entregar. Uma mensagem que poderia transformar sua vida, e que era, por isso, um verdadeiro presente de Natal”.

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A NOITE EM QUE OS HOTEIS ESTAVAM CHEIOS

* Publicado no livro “Amigos Secretos”, de 1994

“O casal chegou à cidade tarde da noite. Estavam cansados da viagem; ela, grávida, não se sentia bem. Foram procurar um lugar onde passar a noite. Hotel, hospedaria, qualquer coisa serviria, desde que não fosse muito caro.

Não seria fácil, como eles logo descobriram. No primeiro hotel o gerente, homem de maus modos, foi logo dizendo que não havia lugar. No segundo, o encarregado da portaria olhou com desconfiança o casal e resolveu pedir documentos. O homem disse que não tinha, na pressa da viagem esquecera os documentos.

— E como pretende o senhor conseguir um lugar num hotel, se não tem documentos? — disse o encarregado. — Eu nem sei se o senhor vai pagar a conta ou não!

O viajante não disse nada. Tomou a esposa pelo braço e seguiu adiante. No terceiro hotel também não havia vaga. No quarto — que era mais uma modesta hospedaria — havia, mas o dono desconfiou do casal e resolveu dizer que o estabelecimento estava lotado. Contudo, para não ficar mal, resolveu dar uma desculpa:

— O senhor vê, se o governo nos desse incentivos, como dão para os grandes hotéis, eu já teria feito uma reforma aqui. Poderia até receber delegações estrangeiras. Mas até hoje não consegui nada. Se eu conhecesse alguém influente… O senhor não conhece ninguém nas altas esferas?

O viajante hesitou, depois disse que sim, que talvez conhecesse alguém nas altas esferas.

— Pois então — disse o dono da hospedaria — fale para esse seu conhecido da minha hospedaria. Assim, da próxima vez que o senhor vier, talvez já possa lhe dar um quarto de primeira classe, com banho e tudo.

O viajante agradeceu, lamentando apenas que seu problema fosse mais urgente: precisava de um quarto para aquela noite. Foi adiante.

No hotel seguinte, quase tiveram êxito. O gerente estava esperando um casal de conhecidos artistas, que viajavam incógnitos. Quando os viajantes apareceram, pensou que fossem os hóspedes que aguardava e disse que sim, que o quarto já estava pronto. Ainda fez um elogio.

— O disfarce está muito bom. Que disfarce? Perguntou o viajante. Essas roupas velhas que vocês estão usando, disse o gerente. Isso não é disfarce, disse o homem, são as roupas que nós temos. O gerente aí percebeu o engano:

— Sinto muito — desculpou-se. — Eu pensei que tinha um quarto vago, mas parece que já foi ocupado.

O casal foi adiante. No hotel seguinte, também não havia vaga, e o gerente era metido a engraçado. Ali perto havia uma manjedoura, disse, por que não se hospedavam lá? Não seria muito confortável, mas em compensação não pagariam diária. Para surpresa dele, o viajante achou a idéia boa, e até agradeceu. Saíram.

Não demorou muito, apareceram os três Reis Magos, perguntando por um casal de forasteiros. E foi aí que o gerente começou a achar que talvez tivesse perdido os hóspedes mais importantes já chegados a Belém de Nazaré”.

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DESISTINDO DE NATAL

* Publicado no Jornal Folha de S. Paulo, em 9 de dezembro de 2005

Segundo pesquisa do instituto Ipsos, encomendada pela Associação Comercial de São Paulo, 32% dos consumidores não pretendem fazer compras neste Natal.

“Prezado Papai Noel: há uma semana eu lhe mandei uma carta com a lista dos meus pedidos para o Natal. Agora estou mandando esta outra carta para dizer que mudei de idéia. Não vou querer nada. Ontem o papai nos avisou que não tem dinheiro para as compras do fim de ano. Papai está desempregado há mais de um ano. A gente mora numa cidade pequena do interior, muito pobre.

No Natal passado, o prefeito anunciou que tinha um presente para a população: uma grande fábrica viria se instalar aqui, dando emprego para muitas pessoas. Meu pai ficou animado. Ele é um homem trabalhador, sabe fazer muitas coisas e achou que com isso o nosso problema estaria resolvido. Agora, porém, o prefeito teve de dizer que a fábrica não vem mais. Não entendo dessas coisas, mas parece que a situação está difícil.

Portanto, Papai Noel, peço-lhe desculpas se o senhor já encomendou as coisas, mas infelizmente vou ter de desistir. Para começar, não quero aquela bonita árvore de Natal de que lhe falei -até mandei um desenho, lembra? Nada de pinheirinho, nada de luzinhas, nada de bolinhas coloridas. A verdade, Papai Noel, é que essas coisas só gastam espaço e, como disse a mamãe, gastam muita luz.

E nada de ceia de Natal, Papai Noel. Nada de peru. Como eu lhe disse, nunca comi peru na minha vida, mas acho que não vai me fazer falta. Se tivesse peru, eu comeria tanto que decerto passaria mal. Portanto, nada de peru. Aliás, se a gente tiver comida na mesa, já será uma grande coisa.

Nada de presentes, Papai Noel. Não quero mais aquela bicicleta com a qual sonho há tanto tempo. Bicicletas custam caro. E além disso é uma coisa perigosa. O cara pode cair, pode ser atropelado por um carro… Nada de bicicleta.

Nada de DVD, Papai Noel. Afinal, a gente já tem uma TV (verdade que de momento ela está estragada e não temos dinheiro para mandar consertar), mas DVD não é coisa tão urgente assim.
Também quero desistir da roupa nova que lhe pedi e dos sapatos. A minha roupa velha ainda está muito boa, e a mamãe vai fazer os remendos nos rasgões. E sapato sempre pode dar problema: às vezes ficam apertados, às vezes caem do pé… Prefiro continuar com meus tênis e o meu chinelo de dedo.

Ou seja: nada de Natal, Papai Noel. Para mim, nada de Natal. Agora, se o senhor for mesmo bonzinho e quiser nos dar algum presente, arranje um emprego para o meu pai. Ele ficará muito grato e nós também. Desejo ao senhor um Feliz Natal e um próspero Ano Novo”.

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UMA PARÁBOLA DE NATAL

* Publicado no livro “Mamãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar”, de 1996

“Papai Noel, como sabemos, existe há muito tempo. E é uma figura universal: ele vai aos mais longínquos lugares, sempre disposto a ouvir os pedidos das crianças e, quando possível, atendê-los. Foi assim que um dia o bom velhinho se viu naquela longínqua e perturbada região do mundo conhecida como Oriente Médio. E lá, perto de uma aldeia, encontrou um menino que brincava. Sem demora, dirigiu-se a ele:

– Meu filho, sou o Papai Noel. Tiveste sorte: já que te encontrei, estou disposto a satisfazer um desejo teu. Diz-me, portanto, o que queres.
O menino não respondeu: fitava-o, em silêncio. Perturbado, o Papai Noel insistiu:

– Vamos lá, diz o que desejas. Para outros, faço restrições, mas a ti estou disposto a fazer concessões especiais. O que queres? Brinquedos? Mesa farta? Quem sabe uma casa nova para ti e teus pais?

– De que adianta a alguém – replicou o menino – ganhar o mundo inteiro, se perde a si mesmo?

A resposta deixou o Papai Noel perturbado. Esperava uma lista comprida de pedidos, não uma ponderação como a que acabava de ouvir. Mas não podia perder a compostura: afinal, era uma figura pública. Optou por ignorar as palavras do menino. Apontando-lhe a roupa modesta, propôs:

– Que tal um traje novo? Heim? Que me dizes? Posso te arranjar um de excelente tecido.

– Observa – disse o jovem – os lírios do campo, que não fiam nem tecem. E contudo, eu te digo: nem mesmo o rei Salomão, com toda sua pompa, se vestiu como um deles.

A esta altura, Papai Noel estava francamente perplexo – e alarmado:

– Escuta, esta tua atitude não leva a nada. Deste jeito, nunca conseguirás coisa alguma. Serás pobre, passarás fome…

– Bem aventurados os pobres – exclamou o menino -, porque deles é o reino de Deus. Bem-aventurados os que têm fome, porque serão saciados.

Com o que Papai Noel resolveu desistir e ir embora. Ali nada tinha a fazer. Era mesmo um menino muito estranho, aquele Jesus de Nazaré”.