Textos
Crônicas Judaicas
O mercador de Veneza

Publicado em 1º/12/2005 no Segundo Caderno (Zero Hora)

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Al Pacino (à direita) estrela versão cinematográfica da peça de Shakespeare / Califórnia Filmes, Divulgação

OPINIÃO CINEMA | A versão cinematográfica de O mercador de Veneza, dirigida com mão segura por Michael Radford e em cartaz nos cinemas, traz de volta antiga questão: é a peça de Shakespeare anti-semita? Para responder, vamos primeiro resumir o enredo.O jovem Bassanio (Joseph Fiennes) diz ao amigo Antonio (Jeremy Irons) – este é o mercador, não Shylock – que precisa de dinheiro para a corte à rica herdeira Portia (Lynn Collins).Com o capital empatado em mercadorias transportadas por navios,Antonio aceita ser fiador de empréstimo que Shyock (Al Pacino) faz a Bassanio.

Shylock, que várias vezes foi ofendido e agredido por Antonio, pede como garantia uma libra da  própria carne deste. O mercador concorda. Bassanio casa com Portia, mas aí ocorre o inesperado: navios de Antonio naufragam, ele não tem como pagar a dívida. O caso vai a juízo e Antonio é salvo por Portia que, disfarçada
de advogado, apresenta um argumento decisivo: Shylock poderá cortar uma libra da carne do mercador, mas sem derramar o sangue do cristão, proibido aos judeus. O usurário é assim derrotado.

Shakespeare baseou-se em fatos reais. Na Idade Média,muitos judeus eram usurários. Não por escolha própria. O empréstimo de dinheiro a juros era proibido pela religião cristã; mas, ao mesmo tempo, os senhores feudais necessitavam de dinheiro para expedições guerreiras, para bens de luxo.O jeito foi empurrar a usura a um grupo humano marginalizado e perseguido.O que tinha uma vantagem em caso de inadimplência: promovia-se um massacre de judeus, extinguindo a dívida. Com o fim da Idade Média e o advento do mercantilismo, o Ocidente já não rejeita o dinheiro; ao contrário, vai em busca. Shylock dará lugar aos banqueiros. E banco é outro assunto; é o templo do dinheiro. Daí a arquitetura imponente, as altas colunas, a luxuosa decoração. Nada de usurários de nariz adunco e olhar furtivo extraindo o dinheiro de suas vestes.

Shylock é um personagem em vias de extinção. Mas não é esta a causa, ou a única causa de sua amargura, a qual explica o estranho penhor exigido. De que lhe serve a carne de Antonio? Por que não pede garantia em dinheiro, em bens?

Neste momento, Shylock está funcionando como um anticapitalista. E o faz movido por um arcaico ressentimento. Ele quer a carne de Antonio por vingança, porque não pode obter do mercador o respeito e o afeto que deseja. São admiráveis as palavras que Shakespeare coloca na boca de Shyock, num discurso em que o extraordinário Al Pacino se supera e que se constitui no auge do filme: “Sou judeu e sou humano”. E pergunta: não têm os judeus afetos, paixões, não são vulneráveis aos mesmos agravos que os cristãos, não sentem frio ou calor? “Se vocês nos espetam,nós não sangramos?”

Sangrar é importante. Ele quer que, sangrando,Antonio lembre que os judeus também têm sangue. É claro que mais adiante Shakespeare castigará o usurário,dando a peça o “final feliz” que sua audiência provavelmente esperava e que, este sim, tem uma conotação anti-semita.

O mercador de Veneza pode, portanto, ser dividido em duas partes, aquela em que Shylock aparece como um atormentado ser humano, e que é essencialmente shakespeariana, e o final, uma concessão ao aristocrático público que então freqüentava o teatro, e de quem o dramaturgo dependia para viver: dinheiro é importante.Mas há coisas mais importantes, e é isto que Shylock nos diz, enquanto pode falar. Enquanto não é para sempre derrotado.