Textos
Crônicas Judaicas
Uma reabilitação histórica

Publicado em 01/07/2006 no Caderno Cultura da Zero Hora

Entenda por que, cem anos depois, o Caso Dreyfus – em que um homem inocente foi condenado ao degredo – ainda reverbera na consciência da Europa e do mundo

O próximo dia 12 de julho será importante na França, mas, esperamos, nada terá a ver com a Copa. A data marca o centenário da absolvição de Alfred Dreyfus, evento que encerrou assim a parte judicial de um dos mais rumorosos casos da história moderna.Relembrando: em 1894, Alfred Dreyfus, capitão de artilharia do exército francês, foi acusado de passar segredos militares à embaixada alemã em Paris. O incidente logo teve grande repercussão, por causa de um detalhe: Alfred Dreyfus era judeu, o que de imediato desencadeou um movimento anti-semita de grandes proporções.

Intimidado, o alto comando francês de imediato submeteu o oficial a julgamento. As evidências eram controversas, para dizer o mínimo, e os erros judiciais numerosos, mas mesmo assim Dreyfus foi condenado a cinco anos de prisão na Ilha do Diabo,na Guiana Francesa, um lugar que,
pelas terríveis condições, justificava a denominação. Dois anos depois, assumiu a contra-espionagem francesa o coronel Georges Picquart que, sem demora, conseguiu achar o verdadeiro espião, um oficial chamado Ferdinand Esterhazy. Informou a seus superiores, que, no entanto, decidiram não macular a honra das forças armadas com um novo julgamento, “por causa de um judeu”. Picquart protestou e foi, por sua vez, preso. Mas as evidências em favor da inocência de Dreyfus cresciam, divulgadas pelos dreyfusards. Em 1898, o escritor Émile Zona publicou, no jornal L’Aurore, uma carta aberta dirigida à presidência da França e que ficou conhecida pelo título que lhe deu o jornalista e político Georges  Clemenceau:“J’Accuse”. No ano seguinte,Dreyfus foi de novo julgado – e de novo condenado a 10 anos de prisão. Em 1906, veio a absolvição e junto com ela a indenização moral, sob a forma da Legião de Honra.

casodreyfus

O caso Dreyfus teve grandes repercussões. Em primeiro lugar,mostrou a força e a virulência da direita anti-semita na França, direita esta que mais tarde viria a colaborar com os nazistas, ajudando na deportação para os campos de extermínio de milhares de judeus. Este fato impressionou profundamente um jornalista austríaco que, em Paris, cobria o processo. Theodor Herzl era um judeu assimilado, mas, diante daquela maré de intolerância, concluiu que para os judeus só havia uma solução possível, a criação de um Estado nacional, objetivo ao qual dedicou sua vida e que viria a se transformar em realidade com a criação do Estado de Israel, em 1948.

De outro lado, o debate todo mostrou que homens de pensamento, artistas, escritores podem e devem se posicionar diante das grandes questões políticas e sociais. Surgiu assim o termo intelectual, cuja criação é atribuída ora a Georges Clemenceau, ora aos ativistas de direita. Referia-se a um grupo nunca muito bem caracterizado e que logo mostrou uma tendência para cisões; assim, a I Guerra opôs nacionalistas e pacifistas, a Revolução Russa criou uma rivalidade mortal entre trotskistas e stalinistas.

O prestígio dos intelectuais chegou a seu auge nos anos após a II Guerra, com Jean-Paul Sartre e o existencialismo.No entanto, o próprio Sartre foi criticado por suas posturas políticas, que incluíram uma militante adesão ao maoísmo.

Cem anos depois do caso Dreyfus, vemos que os dilemas daquela época permanecem atuais.O anti-semitismo e outras formas de intolerância continuam existindo, como se comprova pelas declarações do presidente do Irã ao negar o Holocausto. As reviravoltas da História (a queda do comunismo, por exemplo) resultaram, para os intelectuais, em perplexidade, e não é de admirar que um seminário recentemente levado a cabo em nosso país tenha tido como mote O Silêncio dos Intelectuais. Mas perplexidade não é derrota, pelo contrário. Só os fanáticos são imutáveis em sua posição. Precisamos da lucidez dos homens e mulheres que associam inteligência, cultura, bom senso e equilíbrio emocional na análise dos grandes dilemas de nosso tempo. Precisamos dos intelectuais.