Entre o shtetl e o gulag: vozes do judaísmo russo

Texto: Moacyr Scliar / Desenhos: Ester Gurevich Ai, Rússia, Rússia. Ai, Rússia. Quem te fala, não e ninguém. Nem um presidente, nem um general; nenhuma dessas pessoas que costumam dirigir-se a países com a autoridade que lhes dá o poder e/ou as armas. Quem te fala é alguém que ousaria designar-se por “Um do povo” -Ahad Haam- não tivesse este pseudônimo sido usado antes por um sionista ilustre, Asher Guinzberg, que tuas terras aliás viram nascer. E, se o faz, e por razões que nada têm a ver com a política. E por causa de faces, Rússia, de faces que me são familiares, que despertam em mim emoções: as faces de minha avó, de minha mãe, de meus tios. Faces de malares salientes, de olhos oblíquos, com aquele páIido sorriso característico dos povos que sofrem. Por estas faces te falo, Rússia, e também por lembranças da infância: o samovar de cobre de minha avó, de onde saía o chá que nos aquecia a alma nas longas noites do inverno gaúcho. E te falo por causa das histórias que ouvi. E por causa de Trotski, de I. Babel, de ChagalI, de Sholem Aleichem. Por causa dos filmes e das canções que faziam bater mais forte o meu coração de jovem. E por amor que te falo, Rússia. Por um amor ao qual se misturam a decepção, quando não a raiva. Mas amor, sim. O amor que se sente por uma pátria distante. E que nos, judeus, temos muitas pátrias distantes. Olho o rosto de minha mãe, já falecida, numa velha foto. É o rosto de uma camponesa russa. Por que terá essas feições? Será, como dizem, descendente dos khazares, aquele povo que, no século VIII, se converteu ao judaísmo? É uma história estranha, essa, como estranhas são muitas das histórias que se contam sobre ti, Rússia. Estranha, mas não desprovida de lógica: comprimidos entre os cristãos, ao norte, e o Islã, força crescente, ao suI, não e de surpreender que os khazares tenham visto no judaísmo uma forma de manter a independência e a neutralidade. O que funcionou por dois séculos; em 970 DC um exército russo destruiu o reino da Khazaria. Já então se manifestava em tuas terras, Rússia, aquele irresistível, e imperial, poder de expansão. Poder que o mundo aprenderia a conhecer e a respeitar. Somos, então descendentes dos teus khazares, Rússia. Não sei. Nós, judeus, não somos muito bons nesta aristocrática ocupação que é buscar ascendentes nas brumas do passado. Nossa árvore genealógica é sempre mirrada; um arbusto, como aquela sarça – verdade que ardente – da qual Deus falou a Moisés. De modo que, se quiséssemos, poderíamos recuar ainda mais no tempo e encontrar, antes mesmo dos khazares, notícias de judeus vivendo no território do que depois seria a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Em sua atormentada dispersão pelo mundo-que teve início ao tempo de conquista assíria em 722 AC, prosseguiu sob o domínio grego e romano e tornou-se regra na Europa Medieval – os judeus vagaram de região em região, de aldeia em aldeia. Um movimento aparentemente errático, mas na realidade condicionado pelas forças que orientam os fluxos migratórios: a busca de melhores condições de vida. De riqueza, se possível. A isto, se acrescentava, no caso judaico, a necessidade de manter uma identidade de grupo. Impulsos que a História foi tornando contraditórios. No Ocidente medieval europeu os judeus mantinham, e eram mantidos, como grupo autônomo. Mas a ascensão de uma nova classe, a burguesia, colocou-Ihes um dilema: direitos humanos, sim, e ascensão social provavelmente -mas identidade grupal, não (Clermont-Tonerre, na Assembléia Nacional que estruturou o ideário da Revolução Francesa de 1789: “Aos judeus, como indivíduos, tudo; como nação, nada”). E era isto que fazia os judeus voltarem os olhos para o Leste: pois, se a Oeste estavam o poder, a cultura e a riqueza, o Oriente representava o apelo do emocional, do espiritual. Poderoso tropismo, Rússia, como o sabe a tua mística gente. Tu eras, Rússia, o horizonte da esperança judaica. Em tuas vastas terras os judeus poderiam – O que? – desaparecer. Paradoxal propósito que o judeu Walter Benjamin – ainda que num outro contexto expressaria numa frase melancólica: achar-se num lugar e fácil, difícil e perder-se. E isto é o que os judeus queriam, perder-se, desaparecer da vista de seus inimigos. Mas, de novo, havia aí impulsos contraditórios; se, de um lado, a amarga experiência mostrava que para os judeus era melhor sumir na massa do povo, assimilar-se, de outro lado eram eles portadores de uma destinação histórica, resultante de um condicionamento que os obrigava, sempre e sempre, a se reunir, mesmo quando queriam se dispersar, a aparecer mesmo quando queriam sumir, a subir mesmo quando queriam descer, a falar mesmo quando queriam calar. Durante toda a Idade Média os judeus viveram na Europa Ocidental. Médicos e artesãos, comerciantes e usurários, eles habitavam, na expressão de Marx – este judeu Marx, Rússia, que tanta influência teria em seu destino – os poros da sociedade, num equilíbrio instável que a todo instante podia ser rompido. Disto a usura era um exemplo típico. Proibida aos cristãos, era reservada aos judeus, que emprestavam dinheiro aos senhores feudais para financiar as expedições guerreiras, a compra de bens luxuosos. Devedores perigosos, aqueles, quando não queriam pagar, desencadeavam um massacre contra os credores. Que, por causa disto cobravam altos juros. Um caso de convivência, quando não de cumplicidade, entre criminoso e vítima. Um precário equilíbrio, rompido quando o capitalismo surgiu no cenário europeu, fazendo ruir uma anacrônica estrutura que dificultava a circulação de riquezas. Neste período de intensas transformações, os judeus foram os primeiros a ser executados de suas precárias posições. A partir do século XVI – o século dos descobrimentos, da imprensa, da pólvora, do surgimento das corporações mercantis e dos grandes bancos, tem início um duplo movimento: expulsos daPenfnsula Ibérica, da França, da Alemanha, os judeus dirigem se para Leste; vão ao encontro do Império Russo que se expande para Oeste. Junto a este poder em ascensão
Um Seder para os nossos dias

Texto: Moacyr Scliar / Desenhos: Carlos Scliar Esta mesa em torno a qual nos reunimos, esta mesa com as matzót e com as ervas amargas, esta mesa de Pessach com sua toalha imaculada, esta mesa não é uma mesa; é mágica embarcação com a qual navegamos pelas brumas do passado, em busca das memórias de nosso povo. A esta mesa sentemo-nos, pois. Somos muitos, nesta noite. Somos os que estão e os que já se foram; somos os pais e os filhos, e somos também os nossos antepassados. Somos um povo inteiro, em torno a esta mesa. Aqui estamos, para celebrar, aqui estamos para dar testemunho. Dar testemunho é a missão maior do judaísmo. Dar testemunho é distinguir entre a luz e as trevas, entre o justo e o injusto. É relembrar os tempos que passaram para que deles se extraia o presente a sua lição. Olhemos, pois, a matzá que esta sobre a mesa. Este é o pão da pobreza que comeram os nossos antepassados na terra do Egito. Quem tiver fome – e muitos são os que têm fome, neste mundo em que vivemos – que venha e coma. Quem estiver necessitado – e muitos são os que amargam necessidades, neste mundo em que vivemos – que venha e celebre conosco o Pessach. É o legado ético de nosso povo, a mensagem contida neste simples alimento, neste pão ázimo que o sustentou no deserto, e que o vem sustentando ao longo das gerações. É preciso ser justo e solidário, é preciso amparar o fraco e ajudar o desvalido. O deserto que hoje temos de atravessar não é uma extensão de areia estéril, calcinada pelo sol implacável. É o deserto da desconfiança, da hostilidade, da alienação de seres humanos. Para esta travessia temos de nos munir das reservas morais que o judaísmo acumulou, das poucas e simples verdades que constituem a sabedoria do povo. Ama teu próximo como a ti mesmo. Reparte com ele teu pão. Convida-o para tua mesa. Ajuda-o a atravessar o deserto de sua existência. Tu me perguntas, meu filho, porque é diferente esta noite de todas as noites. Porque todas as noites comemos chamets e matzá, e esta noite somente matzá. Porque todas as noites comemos verduras diversas, e esta noite somente maror. Porque molhamos os alimentos duas vezes. Porque comemos reclinados. Eu te agradeço, meu filho. Agradeço-te por perguntares. Porque, se me perguntas, não posso esquecer; se indagas, não posso ficar calado. Por tua voz inocente, meu filho, fala a nossa consciência. Tua voz me conduz a verdade. Por que esta noite e diferente de todas as noites, meu filho? Porque nesta noite lembramos. Lembramos os que foram escravos no Egito, aqueles sobre cujo dorso estalava o látego do Faraó. Lembramos a fome, a cansaço, a suor, a sangue, as lagrimas. Lembramos a desamparo dos oprimidos diante da arrogância dos poderosos. Lembramos com alívio: é o passado. Lembramos com tristeza: é o presente. Ainda existem Faraós. Ainda existem escravos. Os Faraós modernos já não constroem pirâmides, mas sim estruturas de poder e impérios financeiros. Os Faraós modernos já não usam apenas a látego; submetem corações e mentes mediante técnicas sofisticadas. Seus escravos se contam aos milhões, neste mundo em que vivemos. São os negros privados de seus direitos, na África do Sul; os poetas que, em Cuba, não podem publicar seus versos; os imigrantes a quem, na Europa, está reservado o trabalho pesado e a hostilidade dos grupos fascistas; as refuseniks soviéticos que clamam por sua identidade; as mulheres e os jovens fanatizados pelo regime do Aiatolá, os prisioneiros políticos do Chile, as famélicos do Sahel e do nordeste brasileiro, as populações indígenas lentamente exterminadas em tantos lugares; os operários explorados e as camponeses sem terra. Para estes, ainda não chegou o dia da travessia. Estes ainda não encontraram a sua Terra Prometida. Para eles, a vida ainda e amarga como o maror. É a eles também que lembramos nesta noite, meu filho. Com eles repartimos, em imaginação, o nosso pedaço de matzá. Não sejas como o ingênuo, que ignora os dramas de seu mundo, Não sejas como o perverso, que os conhece, mas nada faz para mudar a situação. Pergunta, meu filho, pergunta tudo o que queres saber – a dúvida é o caminho para o conhecimento. Mas quando te tornares sábio, procura usar a tua sabedoria em benefício dos outros. Reparte-a, como hoje repartimos nossa matzá, Segue o conselho de nossos sábios, e lembra a saída do Egito, não só na noite de Pessach, mas todos os dias de tua vida. Falemos deste povo, então. Falemos dos judeus: pequeno grupo humano que viria a desempenhar um grande papel na história da humanidade. Um povo inquieto. Um povo que não buscava o repouso, nem para si, nem para os outros povos. Há cerca de 4000 anos a trajetória deste povo teve início quando Abraão deixou o seu lugar de origem, na região entre o Tigre e o Eufrates, para ir a Canaan. Pois disse-lhe o Senhor: “Sai de tua terra, e da terra de tua gente, e da casa de teu pai, e vem para a terra que eu te mostrarei; Eu farei de ti uma grande nação, e te abençoarei, e farei grande teu nome; e serás uma benção; E eu abençoarei quem te abençoar, e amaldiçoarei quem te amaldiçoar; e em ti serão todos os povos da terra abençoados.” (Genesis 12:1-3) Mas não cessou com a chegada a Canaan e peregrinação judaica. Povo nômade, os hebreus deslocavam-se constantemente. E por isso não construíram grandes cidades, nem monumentos comparáveis às pirâmides. O que os hebreus levavam consigo, em suas migrações, era a sua tradição, era a palavra do Senhor, da qual eram guardiães; a palavra que deu origem ao livro sagrado, a Bíblia, seu grande legado para a humanidade. De Abraão nasceu Isaac, de Isaac Jacob, e de Jacob, José e seus irmãos. José, o vidente; José, que se tomou vizir do Faraó. Com José foram ter seus ingratos irmãos, quando
A crônica hoje

A minha experiência com crônica data de 1974 quando comecei a escrever semanalmente para o jornal Zero Hora de Porto Alegre. No meu caso foi uma experiência no mínimo curiosa; ate então eu só escrevera textos ficcionais, para serem publicados em livros ou em suplementos literários. Mas fazer crônica e diferente, como e diferente a pagina do livro da pagina do jornal. Sim, em ambos os casos trata-se de texto impressa, destinado a um público, mas as diferenças são grandes, e históricas. Para começar, o livro tal como o conhecemos, surgiu antes do jornal; e do século quinze, enquanto o jornal só aparece no começo do século dezessete. Ao contrario do livro, que em geral tinha um tema único, tratava de vários assuntos num estilo que nem sempre era refinado, literário. Estabeleceu-se uma divisão: os escritores eram uma antiga aristocracia; os jornalistas eram os arrivistas. Os escritores escreviam para a eternidade; os jornalistas estavam presos aos assuntos do momento, nem sempre agradáveis. Escritores falavam mal do jornal: “Da primeira a ultima linha, nada mais e que um circo de horrores”, disse Baudelaire. Edmond e Jules Goncourt acrescentaram: “Efêmera folha de papel, o jornal e o inimigo do livro como a cortesã e inimiga da mulher decente.” Os escritores podiam fazer pesquisas formais, mesmo que estas resultassem em textos obscuros; os jornalistas tinham, e têm, a obrigação da clareza. Os escritores podiam e podem se estender por muitas paginas. Os jornalistas precisam limitar-se a um espaço previamente fixados. Se lhe são solicitadas quarenta linhas então o texto devera ter quarenta linhas. Se for maior, o editor vai ter de cortar – e qual o critério para isso? Se forem menos de quarenta linhas, sobrara um espaço – e como preenchê-Io? Além disto, os jornalistas têm prazo para entregar a matéria, coisa que raramente ocorre com os escritores. De qualquer modo, porém, muitos escritores aderiram à nova forma de comunicação com o público – por exemplo, através do folhetim, equivalente à novela de tevê: uma obra de ficção publicada em capítulos (ou fascículos) que, no século dezenove, era muito popular, graças a autores como o inglês Charles Dickens, cujos textos eram inclusive enviados para os Estados Unidos: multidões aguardavam no porto o navio que trazia os fascículos. No Brasil, José de Alencar também ficou conhecido desta maneira. Em nosso país, aliás, surgiu um gênero que se tornou o elo de ligação entre literatura e o espaço jornalístico: a crônica, praticada por grandes nomes como Machado de Assis e Lima Barreto. No começo era basicamente um gênero intimista; lírica, poética, meditação sobre o cotidiano das pessoas – a versão literária da conversa de bar que, nas mãos de um Rubem Braga, de um Fernando Sabino, de um Paulo Mendes Campos, de um Luis Fernando Verissimo, deu grandes textos. Era um respiradouro, uma brecha na massa não raro sufocante de notícias. Se considerarmos a crônica clássica, aquela que vai, digamos, de Machado de Assis a Rubem Braga, constataremos que houve uma mudança ao longo do tempo. A crônica era um gênero intimista, uma lírica, poética, meditação sobre o cotidiano das pessoas. Mas a mídia mudou: tornou-se mais objetiva, mais “dura”, privilegiando a notícia, a análise, e o comentário sob forma de coluna. Perdeu espaço, como outros gêneros, que praticamente sumiram dos jornais: o folhetim, o conto, a poesia. E é dirigida para um público obviamente restrito. Apesar disso, continuo achando que a crônica precisa de espaço nos grandes veículos. Trata-se de um respiradouro, de uma brecha na massa não raro sufocante de notícias. E é um gênero literário eminentemente brasileiro, que nas mãos de grandes cronistas, deu verdadeiras obras-primas. A crônica, com seu característico de mensagem pessoal, humaniza o veículo, alegra e comove o leitor. ILUSTRAÇÃO: Hugo Enio Braz
Sonho de pai

Num destes dias, dei uma palestra para o círculo de pais e mestres do Colégio Israelita Brasileiro, em Porto Alegre. Às tantas perguntaram-me se eu colocaria o meu filho – que vai fazer dois anos – no colégio. Respondi que sim. E aí perguntaram-me o que esperava eu do colégio. É o que respondo agora. Talvez seja melhor dizer, primeiro, o que não espero do colégio, e isto pode ser resumido numa frase: não espero, e não desejo, que um colégio judaico transforme o meu filho num ritualista, numa pessoa que cumpre preceitos religiosos sem saber exactamente o que está a fazer, nem porquê; numa pessoa rígida, intolerante, voltada para o passado ao invés de estar preocupada com o presente e com o futuro. Não digo que o passado não seja importante. Eu gostaria que o meu filho conhecesse a história judaica e, sobretudo, que a entendesse como parte da história da humanidade. Gostaria que o meu filho soubesse que tudo que aconteceu aos judeus não resultou nem do acaso, nem de um desígnio misterioso; se os judeus foram muitas vezes bode expiatório, isto aconteceu porque foram apanhados no entrechoque violento de forças e interesses contraditórios: feudalismo versus capitalismo, capitalismo versus socialismo e assim por diante. Eu gostaria que este conhecimento da História e dos mecanismos que fazem a sociedade dessem ao meu filho sabedoria e tranquilidade; que o livrassem dos fantasmas da paranóia, doença tão comum entre nós. Eu gostaria que o meu filho tivesse acesso à cultura judaica, tanto por ela ser judaica como por ser cultura. Gostaria que ele tivesse o mesmo prazer e a emoção eu que sinto ao ler os contos de Scholem Aleichem, Mendele e Peretz; as histórias de Isaac Babel e Michael Gold; os livros de Below, Malamud, Bashevis Singer e Philip Roth. Gostaria que ele ficasse extasiado diante dos quadros de Chagall, que gostasse de música Yidish, das canções hebraicas, da dança de Israel. Gostaria, modestamente, que ele lesse o que eu escrevi e que sentisse o judaísmo nos meus próprios livros: gostaria disto, como pai e como judeu. Gostaria que o meu filho tivesse bagagem intelectual sem ser pedante; que compreendesse que literatura, música e pintura devem tornar as pessoas melhores – não superiores – que sentir é tão importante como saber. Gostaria que ele aprendesse a chorar como só os judeus sabem chorar, e a rir como nós: aquele nosso meio sorriso, meio amargo, meio filosófico. Gostaria que o meu filho estivesse solidário com Israel. Que compreendesse o quanto o Estado significou em termos de elevar a dignidade do povo judeu e da magnífica experiência humana. Gostaria que o meu filho tivesse a mentalidade de um kibutznik, mesmo vivendo no Brasil, ou talvez justamente por isto: gostaria que o meu filho tivesse um ideal e que lutasse por ele, não se sacrificando, porém, a fantasias neuróticas. Gostaria que o meu filho não fosse um sectário: que não colocasse, em pólos irremediavelmente opostos, judeus e árabes, israelianos e palestinianos. Que soubesse que neste mundo há lugar para todos, é só uma questão de ajuste. Que soubesse que, de cada vez que há uma guerra, alguém lucra com isso. Não sei se é pedir demais em troca da mensalidade escolar. Mas, afinal, a educação tem uma componente de sonho enxertado na dura realidade quotidiana. E sonhar não é proibido.
O sonho da psicanálise

Publicado em 13/05/1995 na coluna “A cena médica” da Zero Hora Um dia, imaginava Freud, uma placa comemorativa seria inaugurada, com a seguinte inscrição: “Em 1895 foi revelado ao Dr. Sigmund Freud o mistério do sonho.” Cem anos depois, a descoberta de Freud é homenageada não apenas com placas comemorativas, mas com o triunfo da instituição que ele criou, a psicanálise. Que já não é apenas uma forma de tratamento, mas também uma pujante instituição cultural: conta com milhares de aflitos, realiza congressos e encontros e dá origem a uma verdadeira torrente de publicações. O mistério do sonho desvendou-se a Freud graças a uma intuição genial. Até então, tinha-se a idéia de que o sonho informava acerca do futuro, de acordo com o modelo bíblico: José interpretando os sonhos do faraó e revelando os sete anos de vacas gordas e os sete anos de vacas magras. Freud deu-se conta de que, ao contrário, o sonho fala do passado da pessoa, e sobretudo dos desejos reprimidos para o inconsciente. Esta foi também uma descoberta revolucionária – e profética: o ser humano não é governado unicamente pela razão, segundo a concepção introduzida pela modernidade, mas ele está à mercê de forças obscuras que podem explodir com violência inesperada. O nazismo veio a demonstrar, para tristeza do próprio Freud, que este raciocínio estava inteiramente correto. quad. Para minha geração, a psicanálise adquiriu uma importância decisiva. Tínhamos o perfil adequado do analisando: éramos intelectualizados, carregávamos muitos e pesados conflitos (com os nossos pais, com o establishnent) e, sendo de classe média, podíamos pagar o tratamento. Que era revelador, e aliviante. Muitos de nós tínhamos passado pela experiência do comunismo, onde a individualidade é sufocada, mediante a culpa, pelo coletivo. Só quem passou por uma daquelas terríveis sessões de crítica e autocrítica, instituídas pelo estalinismo, sabe o que é isto. A pessoa levantava-se, diante de um grupo, e acusava-se: eu não presto, não valho nada, não passo de um burguês miserável. Lembro-me da primeira vez que ouvi de um analista a frase que equivalia à completa absolvição: tu não tens culpa de nada. Podia até não ser verdade, mas que curava, curava. Os pesadelos do passado davam lugar aos sonhos do futuro. Era agora possível dormir em paz.Os psicanalistas também dormem. Alguns, inclusive, nas sessões. E por que não haveriam de dormir? Poucas coisas são mais chatas do que um neurótico dando voltas em torno ao próprio umbigo (mesmo que seja um umbigo simbólico), desfiando monotonamente as suas lamentações. É uma espécie de melopéia encantatória: a poltrona vai se tornando cada vez mais macia e, poupado do olhar súplice ou acusador de seu paciente, o analista dorme. E talvez até sonhe. Com que sonha um analista? Sonha exatamente com aquilo que Freud sonhava: sonha em desvendar o mistério do sonho. Sonha que está ouvindo um paciente que lhe conta sonhos, e que interpreta estes sonhos com a mesma intuição do pai da psicanálise. Sonha que o paciente lhe diz: aqui, neste ano de 1995, tu desvendaste para mim o mistério do sonho; sem ser prosaico, tu és melhor que qualquer Prozac. A psicanálise do sonho realizou o sonho da psicanálise. Um sonho do qual toda a humanidade, de uma maneira ou outra, veio a se beneficiar.
Médicos e monstros

20/08/1997 Sentenças judiciais nem sempre têm sido muito felizes, no que diz respeito aos direitos humanos, mas este 20 de agosto marca o qüinquagésimo aniversário de uma decisão jurídica que se tornaria um marco não apenas na história da justiça como na da ética médica. Naquela data o Tribunal de Nuremberg condenou 23 médicos nazistas por participação em atividades de genocídio. O número não chega a ser impressionante. E os réus eram, na verdade, figuras secundárias. Ali não estava, por exemplo, Adolf Eichmann, que injetava corante nos olhos de crianças para torná-los arianamente azuis, ou que matou uma criança com suas próprias mãos para confirmar o diagnóstico da tuberculose, posto em dúvida por colegas. Como outros, ele tinha escapado – para ser alcançado depois pelo longo braço da justiça israelense. Importante, contudo, foi a sentença. Porque, anexa a ela, estava um documento que depois se tornaria conhecido como o Código de Nuremberg. Em sua defesa, os médicos nazis haviam alegado que estavam agindo em nome da ciência; para evitar que esta afrontosa alegação servisse de desculpa em crimes posteriores, o Código de Nuremberg estabeleceu vários princípios. Que hoje nos parecem óbvios: um experimento médico só pode ser feito com o consentimento da pessoa; deve proporcionar resultados que beneficiem a humanidade; deve evitar qualquer sofrimento. Que os doutores nazistas tenham violado princípios tão básicos mostra a que ponto chegaram em sua degradação. Mas não só eles, obviamente; em Tuskegee, no Alabama, médicos deixaram de usar a penicilina em pacientes negros com sífilis para observar como evoluiria a doença não tratada (um conhecimento, diga-se de passagem, há muito registrado nos manuais clínicos). Robert Louis Stevensen criou as figuras de Dr. Jeckyll e Mr. Hyde, o médico e o monstro, para simbolizar o antagonismo entre o bem e o mal. Nos doutores nazistas este antagonismo desapareceu: eram médicos e eram monstros. Diante da enorme quantidade de pessoas indefesas, a medicina optou pela extrema crueldade das experiências sem sentido, da tortura impiedosa, das câmaras de gás. Uma experiência que os médicos da ditadura, por exemplo, herdaram e que praticaram – inclusive aqui no Brasil – até há muito pouco tempo. Cinqüenta anos depois da sentença do Tribunal de Nuremberg é necessário lembrar, ainda uma vez, que a medicina surgiu, única e exclusivamente, para ajudar o ser humano. Qualquer ser humano.
Uma reabilitação histórica

Publicado em 01/07/2006 no Caderno Cultura da Zero Hora Entenda por que, cem anos depois, o Caso Dreyfus – em que um homem inocente foi condenado ao degredo – ainda reverbera na consciência da Europa e do mundo O próximo dia 12 de julho será importante na França, mas, esperamos, nada terá a ver com a Copa. A data marca o centenário da absolvição de Alfred Dreyfus, evento que encerrou assim a parte judicial de um dos mais rumorosos casos da história moderna.Relembrando: em 1894, Alfred Dreyfus, capitão de artilharia do exército francês, foi acusado de passar segredos militares à embaixada alemã em Paris. O incidente logo teve grande repercussão, por causa de um detalhe: Alfred Dreyfus era judeu, o que de imediato desencadeou um movimento anti-semita de grandes proporções. Intimidado, o alto comando francês de imediato submeteu o oficial a julgamento. As evidências eram controversas, para dizer o mínimo, e os erros judiciais numerosos, mas mesmo assim Dreyfus foi condenado a cinco anos de prisão na Ilha do Diabo,na Guiana Francesa, um lugar que, pelas terríveis condições, justificava a denominação. Dois anos depois, assumiu a contra-espionagem francesa o coronel Georges Picquart que, sem demora, conseguiu achar o verdadeiro espião, um oficial chamado Ferdinand Esterhazy. Informou a seus superiores, que, no entanto, decidiram não macular a honra das forças armadas com um novo julgamento, “por causa de um judeu”. Picquart protestou e foi, por sua vez, preso. Mas as evidências em favor da inocência de Dreyfus cresciam, divulgadas pelos dreyfusards. Em 1898, o escritor Émile Zona publicou, no jornal L’Aurore, uma carta aberta dirigida à presidência da França e que ficou conhecida pelo título que lhe deu o jornalista e político Georges Clemenceau:“J’Accuse”. No ano seguinte,Dreyfus foi de novo julgado – e de novo condenado a 10 anos de prisão. Em 1906, veio a absolvição e junto com ela a indenização moral, sob a forma da Legião de Honra. O caso Dreyfus teve grandes repercussões. Em primeiro lugar,mostrou a força e a virulência da direita anti-semita na França, direita esta que mais tarde viria a colaborar com os nazistas, ajudando na deportação para os campos de extermínio de milhares de judeus. Este fato impressionou profundamente um jornalista austríaco que, em Paris, cobria o processo. Theodor Herzl era um judeu assimilado, mas, diante daquela maré de intolerância, concluiu que para os judeus só havia uma solução possível, a criação de um Estado nacional, objetivo ao qual dedicou sua vida e que viria a se transformar em realidade com a criação do Estado de Israel, em 1948. De outro lado, o debate todo mostrou que homens de pensamento, artistas, escritores podem e devem se posicionar diante das grandes questões políticas e sociais. Surgiu assim o termo intelectual, cuja criação é atribuída ora a Georges Clemenceau, ora aos ativistas de direita. Referia-se a um grupo nunca muito bem caracterizado e que logo mostrou uma tendência para cisões; assim, a I Guerra opôs nacionalistas e pacifistas, a Revolução Russa criou uma rivalidade mortal entre trotskistas e stalinistas. O prestígio dos intelectuais chegou a seu auge nos anos após a II Guerra, com Jean-Paul Sartre e o existencialismo.No entanto, o próprio Sartre foi criticado por suas posturas políticas, que incluíram uma militante adesão ao maoísmo. Cem anos depois do caso Dreyfus, vemos que os dilemas daquela época permanecem atuais.O anti-semitismo e outras formas de intolerância continuam existindo, como se comprova pelas declarações do presidente do Irã ao negar o Holocausto. As reviravoltas da História (a queda do comunismo, por exemplo) resultaram, para os intelectuais, em perplexidade, e não é de admirar que um seminário recentemente levado a cabo em nosso país tenha tido como mote O Silêncio dos Intelectuais. Mas perplexidade não é derrota, pelo contrário. Só os fanáticos são imutáveis em sua posição. Precisamos da lucidez dos homens e mulheres que associam inteligência, cultura, bom senso e equilíbrio emocional na análise dos grandes dilemas de nosso tempo. Precisamos dos intelectuais.
O mercador de Veneza

Publicado em 1º/12/2005 no Segundo Caderno (Zero Hora) A versão cinematográfica de O mercador de Veneza, dirigida com mão segura por Michael Radford e em cartaz nos cinemas, traz de volta antiga questão: é a peça de Shakespeare anti-semita? Para responder, vamos primeiro resumir o enredo.O jovem Bassanio (Joseph Fiennes) diz ao amigo Antonio (Jeremy Irons) – este é o mercador, não Shylock – que precisa de dinheiro para a corte à rica herdeira Portia (Lynn Collins).Com o capital empatado em mercadorias transportadas por navios,Antonio aceita ser fiador de empréstimo que Shyock (Al Pacino) faz a Bassanio. Shylock, que várias vezes foi ofendido e agredido por Antonio, pede como garantia uma libra da própria carne deste. O mercador concorda. Bassanio casa com Portia, mas aí ocorre o inesperado: navios de Antonio naufragam, ele não tem como pagar a dívida. O caso vai a juízo e Antonio é salvo por Portia que, disfarçada de advogado, apresenta um argumento decisivo: Shylock poderá cortar uma libra da carne do mercador, mas sem derramar o sangue do cristão, proibido aos judeus. O usurário é assim derrotado. Shakespeare baseou-se em fatos reais. Na Idade Média,muitos judeus eram usurários. Não por escolha própria. O empréstimo de dinheiro a juros era proibido pela religião cristã; mas, ao mesmo tempo, os senhores feudais necessitavam de dinheiro para expedições guerreiras, para bens de luxo.O jeito foi empurrar a usura a um grupo humano marginalizado e perseguido.O que tinha uma vantagem em caso de inadimplência: promovia-se um massacre de judeus, extinguindo a dívida. Com o fim da Idade Média e o advento do mercantilismo, o Ocidente já não rejeita o dinheiro; ao contrário, vai em busca. Shylock dará lugar aos banqueiros. E banco é outro assunto; é o templo do dinheiro. Daí a arquitetura imponente, as altas colunas, a luxuosa decoração. Nada de usurários de nariz adunco e olhar furtivo extraindo o dinheiro de suas vestes. Shylock é um personagem em vias de extinção. Mas não é esta a causa, ou a única causa de sua amargura, a qual explica o estranho penhor exigido. De que lhe serve a carne de Antonio? Por que não pede garantia em dinheiro, em bens? Neste momento, Shylock está funcionando como um anticapitalista. E o faz movido por um arcaico ressentimento. Ele quer a carne de Antonio por vingança, porque não pode obter do mercador o respeito e o afeto que deseja. São admiráveis as palavras que Shakespeare coloca na boca de Shyock, num discurso em que o extraordinário Al Pacino se supera e que se constitui no auge do filme: “Sou judeu e sou humano”. E pergunta: não têm os judeus afetos, paixões, não são vulneráveis aos mesmos agravos que os cristãos, não sentem frio ou calor? “Se vocês nos espetam,nós não sangramos?” Sangrar é importante. Ele quer que, sangrando,Antonio lembre que os judeus também têm sangue. É claro que mais adiante Shakespeare castigará o usurário,dando a peça o “final feliz” que sua audiência provavelmente esperava e que, este sim, tem uma conotação anti-semita. O mercador de Veneza pode, portanto, ser dividido em duas partes, aquela em que Shylock aparece como um atormentado ser humano, e que é essencialmente shakespeariana, e o final, uma concessão ao aristocrático público que então freqüentava o teatro, e de quem o dramaturgo dependia para viver: dinheiro é importante.Mas há coisas mais importantes, e é isto que Shylock nos diz, enquanto pode falar. Enquanto não é para sempre derrotado.