Redescobrindo Scliar | Moacyr Scliar também era cirurgião… das palavras

Embora médico, Moacyr Scliar não atuava como cirurgião, o que nunca impediu que o doutorando em Escrita Criativa pela PUCRS, Daniel Gruber, considerasse o escritor como tal. “O Scliar escritor era, sem dúvida, cirúrgico na sua composição: revisava e alterava seus textos com a precisão, a paciência e a sagacidade exigidas a um escritor com senso de responsabilidade por seu trabalho”. É a partir dessa perspectiva que o Daniel nos conta as suas percepções sobre a obra literária de Moacyr na nossa série Redescobrindo Scliar. Boa leitura! •••••••••••• Moacyr Scliar também era cirurgião… das palavras Até então, Moacyr Scliar era para mim um escritor cheio de inventividade e intuição, um contador de histórias no seu sentido mais clássico. Características que estavam naturalmente ligadas ao seu jeito franco e tranquilo, repleto de sensibilidade e generosidade. Foram essas as impressões que tive na única vez que conversei com ele, enquanto eu ainda era um jovem repórter fazendo a cobertura da feira do livro de Novo Hamburgo. “Eu venho sempre que me convidam”, disse ele, se preparando para falar a uma turma de escola, “porque a crianças percebem que o escritor é uma pessoa igual a elas, e isso faz com que gostem mais de ler.” E ele estava certo. Mas conhecer a intimidade da sua escrita foi ainda mais revelador. O contato com seus manuscritos arquivados no acervo do Delfos (Espaço de Documentação e Memória Cultural), da PUCRS, me levou a conhecer o Scliar cirúrgico. Não no sentido médico, mas literário. Embora renegasse – por modéstia – o título de escritor profissional, ficou claro para mim, ao folhear seus manuscritos, que era um artista e um profissional que juntava inspiração e dever no seu ofício. Um escritor com intensa responsabilidade perante à palavra e à narrativa. Encontrei um Scliar que não deixava as ideias escaparem da cabeça, e as anotava em qualquer papelzinho que estivesse à mão, fosse o verso de seus prontuários médicos, recibos de compras, guardanapos, o que fosse. E depois se desdobrasse sobre essas ideias, como se tivesse imposto uma missão a si mesmo – a de levar o encanto das histórias à alma dos leitores. Embora o Scliar médico não atuasse como cirurgião, o Scliar escritor era sem dúvida cirúrgico na sua composição: revisava e alterava seus textos com a precisão, a paciência e a sagacidade exigidas a um escritor com senso de responsabilidade por seu trabalho. Em suas versões datilografadas, acrescentavas trechos à mão, cortava palavras desnecessárias ou em excesso, mudava parágrafos de lugar. Depois passava a limpo, para ver o texto emergir em sua versão final ou quase final. Sua preocupação com o que escrevia não era superficial, sua criação não era puramente intuitiva como o resultado nos faz crer, mas repleto de movimentos cerebrais, típicos de um intelectual de seu patamar. Isso certamente evidencia uma preocupação e um respeito com o leitor. Mas também revela um autor preocupado com a essencialidade do texto: não lhe interessava os floreios e as erudições típicas de escritores inseguros ou envaidecidos, mas a essencialidade da história ou da ideia que queria transmitir. Era essa a missão que impunha para si como escritor. E a nós, leitores, cabe a gratidão por seus gestos. DANIEL GRUBER Doutorando em Escrita Criativa pela PUCRS
Trecho da orla do Guaíba agora recebe o nome de Moacyr Scliar

Em ato na manhã da última quinta-feira, 7 de junho, no Atracadouro de Turismo Náutico, o trecho da orla do Guaíba entre a Usina do Gasômetro e o Anfiteatro Pôr-do-Sol foi batizado de Orla Moacyr Scliar, em homenagem ao médico e escritor porto-alegrense. O presidente da Câmara Municipal, vereador Valter Nagelstein (MDB), autor da iniciativa, promulgou a Lei 12.402, de 23 de abril de 2018, aprovada pelo Legislativo. Ao entregar à esposa do escritor, Judith Scliar, um protótipo da placa que será instalada, Nagelstein destacou que “nosso médico e escritor notável agora empresta seu nome, para sempre, à cidade que ele amou”. “Tolstoi disse que quem pinta as cores de sua aldeia pinta o mundo, e Scliar fez isso. Ele imortalizou Porto Alegre, falando sobre o Bom Fim, e sobre o povo judaico. Assim, nada mais justo que o nosso imortal da Academia Brasileira de Letras seja também imortalizado em Porto Alegre, neste espaço de deleite, convivência e prazer.” Judith afirmou ser uma honra ter o trecho da orla com o nome de Scliar, local que ele também costumava frequentar, além do Bom Fim. “Recebemos esta homenagem com muita alegria e acho que ele ficaria muito feliz, porque ele sempre foi apaixonado por Porto Alegre”, destacou. Também participaram do ato o presidente da Federação Israelita, Zalmir Chwartzmann, e familiares de Scliar: Marili Scliar (irmã), Miguel Oliven (cunhado) e Jacobo Buchalter (cunhado). Texto: Cibele Carneiro/CMPA (reg. prof. 11.977) Edição: Marco Aurélio Marocco/CMPA (reg. prof. 6062)
Orla Moacyr Scliar será oficializada em ato solene na cidade de Porto Alegre

A cidade de Porto Alegre que Moacyr Scliar tanto adorava agora terá um espaço público com o nome do escritor! Em ato solene a ser realizado amanhã, 7 de junho, às 10h, no Atracadouro de Turismo Náutico da Usina do Gasômetro, o Presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre, vereador Valter Nagelstein, promulga a lei 12.402/18 que denomina “Orla Moacyr Scliar” o trecho da orla do Guaíba entre a Usina do Gasômetro e o Anfiteatro Pôr-do Sol que está sendo revitalizado pela Prefeitura. Deixamos registrado aqui o convite para que todos participem da oficialização dessa homenagem que tanto orgulha a carreira e a memória do nosso querido Moacyr Scliar!
Redescobrindo Scliar | “O Exército de Um Homem Só” por Elcio Cornelsen

Doutor em Germanística pela Freie Universität Berlin e professor associado da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Elcio Cornelsen analisa “O Exército de Um Homem Só” nesse novo capítulo da série Redescobrindo Scliar. Boa leitura! •••••••••••• Em 1973, Moacyr Scliar lançou a obra O exército de um homem só, cujo protagonista, Mayer Guinzburg aliás Capitão Birobidjan sonha em fundar a “Nova Birobidjan” em solo brasileiro, reeditando o projeto de assentamento coletivo de judeus na Rússia. Em termos estéticos, ironia e humor possibilitam a construção de um espaço político utópico, fruto dos devaneios dessa personagem. Porta-voz de um discurso salvacionista, ao estilo da famosa personagem Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, Mayer Guinzburg se revela contrário a ordens instituídas, assumindo, assim, pelo seu caráter contestatório, uma postura “revolucionária”. “Nova Birobidjan”, aos olhos do Capitão, afigura-se como o lócus para abrigar uma sociedade perfeita e, portanto, utópica, a ser almejada. Portanto, em tempos de franco declínio das grandes “utopias políticas” do século XX, A leitura do romance O exército de um homem só se mostra, deveras, atual. Mayer Guinzburg encerra em si traços quixotescos. Judeu russo que imigrara para a cidade de Porto Alegre ainda menino, o protagonista transforma-se em Capitão Birobidjan, ao decidir erigir em pleno bairro do Bom Fim a “Nova Birobidjan”, fundamentada numa utopia política de caráter socialista. Contrariando o pai, que queria vê-lo tornar-se rabino, Mayer Guinzburg tencionava reeditar em terras gaúchas o projeto levado a cabo na antiga União Soviética, que era, originalmente, o de instalar na Sibéria, às margens dos rios Bira e Bidjan, em 1928, um assentamento para judeus russos, onde estes deveriam manter sua cultura à luz dos ideais revolucionários, mesmo que isso pudesse revelar-se paradoxal. No romance, temos a seguinte passagem que enfatiza o sentido de tal projeto encampado por Mayer Guinzburg: “Birobidjan. Um dia os judeus do Bom Fim reconheceriam a importância deste nome. Birobidjan: a redenção do povo judeu, o fim das peregrinações. Birobidjan!” Noutras passagens, a utopia política é apresentada como algo futuro, por se realizar, como se fosse imaginada e idealizada enquanto algo passível de ser concretizado. Um exemplo disso é o encontro de Mayer Guinzburg com sua namorada Léia e com seu amigo José Goldman, logo no início do romance, momento em que se prefigura o projeto utópico: “Mayer Guinzburg tem idéias. Formarão uma colônia coletiva, Léia, José Goldman e ele. […] Haverá um mastro, onde flutuará ao vento a bandeira de Nova Birobidjan. Semearão milho e feijão. Tratarão as plantas como amigas, como aliadas no grande empreendimento. Criarão um porco – o Companheiro Porco; uma cabra – a Companheira Cabra; uma galinha – a Companheira Galinha. […]”. Por sua vez, a busca pela realização da utopia lança a personagem de Scliar a um estado de demência e, ao mesmo tempo, de marginalidade, enquanto ser rebelde e inconformado, que não tem olhos para mais nada além desse espaço idealizado que crê poder erigir, uma espécie de “Terra Prometida”, como fruto da “revolta solitária de um novo messias”, conforme aponta Gilda Salem Szklo, uma das principais estudiosas da obra de Moacyr Scliar. Portanto, origem, conflito geracional e momento político pré-formatam a personagem que se recusa a aceitar a ordem capitalista instituída, marcada pela exploração e a injustiça, e sonha com uma sociedade utópica, no devir, em que políticas igualitárias seriam adotadas, fazendo com que as mazelas e as desigualdades sociais fossem extintas. Mayer Guinzburg, assim como a famosa personagem de Miguel de Cervantes, corre contra moinhos de vento, fadado a se estatelar em seu projeto messiânico. Se a obra-prima de Cervantes apresenta um estágio de decadência do romance de Cavalaria medieval, podemos entender a personagem de Scliar como representação do declínio das utopias políticas. Nesse sentido, o humor tem papel decisivo, pois a aparente demência da personagem produz o rizivel, despertado pelo absurdo de sua proposta política utópica. Em tempos de liberalismo selvagem, entretanto, o romantismo ideológico de Mayer Guinzburg parece estar em baixa, soterrado pelo ressentimento classista em sociedades marcadas historicamente pela exploração e desigualdade social. Talvez aqui, extraído de seu discurso perpassado pela crença messiânica de mundos utópicos, tal brado revolucionário do Capitão Birobidjan possa soar deveras atual: “Nada tens a perder, a não ser os teus grilhões!” ELCIO LOUREIRO CORNELSEN Doutor em Germanística pela Freie Universität Berlin, Alemanha; Professor Associado IV da Faculdade de Letras da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, atuando nas áreas de Língua e Literatura Alemã (graduação), e de Teoria da Literatura e Literatura Comparada (pós-graduação)
Redescobrindo Scliar | As faces da verdade: história, biografia e ficção em Moacyr Scliar

Recentemente lançado na Croácia, o romance “A Majestade do Xingu” ganha uma nova leitura a partir da análise do mestrando em literatura da UFRGS, Alisson Preto Souza. Ele é o mais novo convidado da nossa série Redescobrindo Scliar, onde amigos, colegas e admiradores desbravam obras que também merecem amplo reconhecimento na carreira do escritor. Não percam, abaixo, o texto do Alisson! •••••••••••• Moacyr Scliar, escritor e médico que focaliza suas criações literárias em questões relacionadas à identidade judaica e à diáspora, com mais de cem obras escritas, publica, em 1997, a obra A Majestade do Xingú. Obra que traz um narrador que relata, em primeira pessoa, às adversidades da vida de uma família judaica para deixar seu país de origem e buscar a oportunidade no Brasil. A importância da literatura como potência para um esclarecimento histórico e político na construção da identidade é irrevocável. Um dos aspectos da literatura de Scliar é esta articulação entre discursos que navegam entre história, ficção e memória atravessada, sobretudo, pela movimentação da identidade judaica. Dentro de suas especificidades, essas literaturas revelam tanto as performances de identidades migrantes quanto as pedagogias para a construção da nação brasileira. Consequentemente, no espaço de múltiplas performances culturais, sobreposições, acabam abafando, oprimindo e suprimindo práticas culturais de certas comunidades, como assim destacam os estudos culturais. Curiosamente, alguns autores resolvem contar essas histórias apagadas e tão infrequentes dentro dos sistemas de ensino e do âmbito público: um exemplo desses autores é Moacyr Scliar. A obra A Majestade do Xingu é narrada por um homem que fala com o doutor a respeito de uma trajetória significativa de sua vida: o encontro com uma figura que admira que é Noel Nutels. O narrador retoma a trajetória imigratória de sua família e considera contar a história um ato de extrema pertinência. O fenômeno da imigração no Brasil está presente na obra A Majestade do Xingú uma vez que a trajetória do narrador tem início nos cenários do leste-europeu, e destino no clima e espaço tropical do nordeste brasileiro, onde o povo judeu teria oportunidade para exercer sua liberdade e seus negócios. Neste incrível romance, o mote para a imigração está associado as questões relacionadas à repressão da identidade judia e as condições de vida no leste europeu: a fuga dos pogroms, dificuldades relacionadas à peste branca e as condições de subsistência da família. A presença – pouco registrada pela história do Brasil – do personagem Noel Nutels na narrativa de Scliar traz à obra traços biográficos que se fundem à história do narrador judeu. Nutels fora um médico judeu importante no que concerne o bem-estar indígena. Em 1913, ele nasceu na atual Ucrânia. Em 1921, imigrou para o Brasil residindo em Pernambuco por algum tempo. Em 1938, formou-se em Medicina no Rio de Janeiro. Em 1943, foi o médico da primeira expedição do Roncador-Xingú, aliado a um programa governamental chamado Marcha para o Oeste criado durante o Estado Novo. Tanto a conversa com o médico na UTI, o desejo do pai do personagem-narrador, quanto a figura de Nutels são índices da importância da medicina como ferramenta para mudança social. A medicina é o pano de fundo que costura tanto a interioridade quanto a exterioridade da narrativa de Scliar. Mesmo com toda relevância na história nacional brasileira, a história de Nutels não é nem popularizada tão pouco reconhecida pelas pedagogias que dizem o que é importante saber, ou não, sobre o Brasil e sobre o judeu. Através da relação entre Nutels e o narrador, ao longo da trajetória dos personagens, percebe-se um desejo inconsciente e comum relativo à realidade e cultura judaica: deter um lugar de valor e reconhecimento no estrato da comunidade judaica através da medicina. Este lugar está relacionado à profissão de médico. Os médicos possuem um papel social importante na comunidade judaica. Através do estudo, mesmo os pobres podem tornar-se médicos. Só assim, de fato, os pobres possuem a oportunidade de ter algum reconhecimento valioso dentro de sua cultura. Os médicos geralmente atendem a família dos condes e são tratados com todo luxo, tendo fartura uma ótima hospedagem e seus desejos atendidos. Apenas pessoas ricas poderiam hospedar, pagar e prover aos médicos. Sobretudo, destaca-se que, tanto o medico como seus familiares ganhariam passe-livre nas perseguições religiosas: um título que concede ao homem e sua família uma espécie de neutralidade político-religiosa, segurança e riqueza. Este aspecto é importante uma vez que Nutels, ao chegar no Brasil interessa-se as questões indígenas. O indígena no Brasil perde o território e sofre com a disseminação de doenças trazidas pelos europeus séculos anteriores. Scliar decide retomar uma dessas histórias mal ou pouco contadas referente à incursão da cultura judaica no Brasil, e escolhe ir mais além, homenageando Nutels, um judeu que escolheu preocupar-se com uma das questões até então mais relevantes da construção da identidade brasileira que é a exclusão, o descompromisso de diversas ordens e o esfacelamento da cultura indígena no país. A presença da identidade judaica no Brasil é expressa através da escrita de Scliar, que assim como Noel Nutels e o narrador, possui ascendência judaica. Scliar é filho de imigrantes judeus nascidos em Bessarábia, e mesmo embora a obra trate a respeito da presença do estrangeiro no Brasil, também homenageia um judeu pela empatia e cuidado por um povo que não é o seu. Uma das referências a esta homenagem se dá no título da obra que brinca com as palavras “Majestade” e “Xingú”. Por um lado, a palavra “Majestade” traz uma referência não só ao nome do que viria ser a loja do narrador. Por outro, traz também as histórias dos tzares, supremos conquistadores ou monarcas do leste europeu. Em relação à palavra “Xingú”, esta é reveladora de uma área em que vive a maior concentração indígena do país, sublinhando o interesse voluntário de Nutels com as minorias no Brasil. A Majestade do Xingú expõe a maestria de Scliar no processo de criação literária que usa a biografia para expressar a voz da identidade judia. Apesar de utilizar a história de um
Redescobrindo Scliar | Entre o imaginário infantil e o conflito identitário judaico

“A Guerra no Bom Fim” é um clássico de Moacyr Scliar que trata, entre outros temas, sobre o imaginário infantil e o conflito identitário judaico. E é a partir dessas duas perspectivas que a doutoranda em letras da UFRGS, Christini Roman de Lima comenta o célebre livro do escritor na nossa série Redescobrindo Scliar. Confiram, abaixo, o texto completo! •••••••••••• A Guerra no Bom Fim é o romance de estreia de Moacyr Scliar. Ele foi publicado no ano de 1972 e retrata a trajetória de formação de Joel, um judeu pertencente à primeira geração de imigrantes nascidos no Brasil, que procura encontrar o seu lugar entre as tradições judaicas e a cultura do país de acolhimento. A Guerra no Bom Fim, em sua primeira edição, era composta por quatro partes: a infância do protagonista – sem título; a juventude – “A Guerra no Morro da Velha”; e a vida adulta – dividida em: “A Guerra em Israel ou o progresso do peregrino”; e “A guerra na unidade coronária”. Posteriormente a obra foi modificada, sendo mantida apenas a parte inicial. A trama da primeira edição discorre sobre o imaginário e os conflitos do menino (como a morte prematura de seu irmão, o antissemitismo e a guerra), passa pela crise identitária do jovem e aporta na busca do homem por suas origens – as quais se desdobram no reflexo de Joel sob o rosto de um palestino, Abu Shihab, e no reencontro com o Bom Fim. O romance de Scliar começa em meio à Segunda Guerra Mundial – a trama inicia no ano de 1943. A guerra está associada ao imaginário infantil de Joel e é, deste modo, abordada apenas pelo ângulo do imaginário, mas, ainda assim, demonstra os efeitos do conflito na formação do garoto e em toda uma geração de judeus que não estavam diretamente envolvidos no evento, mas sofreram as repercussões advindas dele. O enredo, em sua primeira parte, é fortemente marcado pelo fantástico, já que a história é construída sob a perspectiva de Joel criança e conta com um narrador discreto, colado ao protagonista. Portanto, na primeira parte do enredo, a narrativa se dá através do olhar do menino sobre o mundo a sua volta. No segundo momento, o texto acompanha a perspectiva do jovem Joel e, consequentemente, ganha aspecto realista. A guerra, além disso, é um elemento de grande importância no romance, sendo que está presente na primeira parte enquanto elemento conversor da imaginação do garoto: é o motor do imaginário infantil de Joel e representa papel fundamental na formação do sujeito. Na primeira edição, de 1972, a guerra também aparece na parte final, no “eterno retorno” da história em que o homem descobre-se em sua peregrinação, sendo que a guerra caracteriza-se novamente como fundamental na formação do menino Abu Shihab, o “outro” de Joel. Outro elemento crucial na intriga de A Guerra no Bom Fim diz respeito à angústia identitária, essa questão atravessa a obra de Scliar e é parte fundamental da trajetória do povo judeu, conforme destaca Hannah Arendt (1979, p. 19): “em parte alguma e em tempo algum depois da destruição do Templo de Jerusalém (no ano 70) os judeus possuíram território próprio e Estado próprio; sua existência física sempre dependeu da proteção de autoridades não-judaicas”. Por não disporem de um território e Estado próprios, os judeus passam a viver o dilema entre a assimilação e a marginalização. Este dilema é caracterizado, no enredo de Scliar, através da migração judaica, retratado por meio da família de Joel, composta por Leão e Pessl, seus avós, Samuel e Shendl, seus pais, Nathan, seu irmão, e Malke Tube, a égua da família. Leão e Pessl, buscando fugir do clima, da miséria e dos pogroms da Rússia czarista, partem com a família para o sul do Brasil, incentivados pelas promessas de um futuro melhor e pela perspectiva oferecida pela Jewish Colonization Association de tornarem-se lavradores nas colônias de Quatro Irmãos, no Rio Grande do Sul. Leão e família deixam a Rússia para tomar posse de uma gleba de terra na colônia de Filipson, entretanto, mostraram-se inaptos para vida rural. Leão era alfaiate, “sabia manejar agulha e linha, não a enxada”. A promessa inicial não se concretiza e, mais uma vez, a família tem de “levantar âncoras” rumo à urbana Porto Alegre e ao bairro do Bom Fim. Da promessa migratória de Filipson resta apenas a égua Malke Tube – que apareceu nas terras de Leão “como milagre”: “a primeira dádiva que receberam” (1972, p. 13). Malke Tube, outrora a égua sensual, debochada e “Maliciosa”, tornara-se, para eles, o símbolo da esperança de uma vida promissora, o último vestígio das colônias que motivaram a migração. Esta “primeira dádiva” – insígnia da “Fortuna”, ou seja, do destino venturoso que “estava-lhes escrito” – concedida à família, no entanto, tem de ser açoitada para “gerar frutos” e, ainda assim, jamais se entrega plenamente a eles. Samuel, por sua vez, pertence à segunda geração de judeus imigrantes e, mesmo nascido na Rússia, passa a maior parte de sua vida no Brasil –era muito novo quando deixou seu país de origem –, o que o faz assimilar alguns traços da cultura local, embora as tradições judaicas imperem em sua formação. Samuel é casado com Shendl e tem dois filhos: Joel e Nathan. A família é pobre; vive modestamente com o dinheiro produto das “andanças” de Samuel que, “mascate”, vendia a prestação para uma clientela nem sempre muito receptiva. No Bom Fim as famílias judias eram muito próximas. No entanto, o bairro não era uma comunidade unicamente judaica; nele havia uma gama de imigrantes de várias origens. Conviviam ainda com os moradores da Colônia Africana e do Morro da Velha. A narrativa apresenta um paralelo entre as comunidades judaica e africana, por, em um primeiro momento, serem vítimas de problemas comuns – como o estigma da perseguição a que estavam submetidos historicamente e o dilema social da pobreza. Joel e o frágil Nathan são os primeiros integrantes da família a nascer no Brasil; eles não
Obras de Moacyr Scliar são tema de mesa redonda com entrada franca em Porto Alegre

A obra do escritor gaúcho Moacyr Scliar será novamente celebrada em Porto Alegre com um encontro que reunirá, no dia 10 de maio, das 19h30 às 21h, personalidades da área cultural, literária e acadêmica na Livraria Cultura, do shopping Bourbon Country. O motivo é especial: o relançamento dos livros “Histórias que os Jornais Não Contam” e “Uma Autobiografia Literária: o texto, ou: a vida”. No encontro, o público participará de uma mesa redonda com entrada franca, reunindo a escritora Cíntia Moscovich, o cineasta Carlos Gerbase e o professor Sergius Gonzaga. Eles compartilharão as suas lembranças e impressões acerca dos dois livros relançados pela editora L&PM e do legado do escritor gaúcho, falecido em 2011. O debate do trio será mediado pela jornalista e escritora Paula Taitelbaum. Para Judith Scliar, idealizadora do evento, a mesa redonda será de alto nível: “São quatro nomes que conhecem profundamente a carreira do Moacyr e que, a partir desses dois livros selecionados, revisitam a influência da carreira literária de um escritor escritor de mão cheia, cujas palavras sempre farão falta”. SERVIÇO Mesa redonda sobre Moacyr Scliar, com o relançamento dos livros “Histórias que os Jornais Não Contam” e “Uma Autobiografia Literária: o texto, ou: a vida” Na Livraria Cultura (Avenida Túlio de Rose, 80) Dia 10 de maio, das 19h30 às 21h Entrada franca, sujeito a lotação do auditório SOBRE OS LIVROS “Histórias que os Jornais Não Contam”: em suas crônicas semanais na Folha de S. Paulo, Moacyr Scliar mostrava o lado fantástico da vida real, criando histórias ficcionais inspiradas em notícias do jornal. “Histórias que os jornais não contam” reúne 54 dessas crônicas, em que o autor consegue transformar, com leveza e humor, o mais cotidiano dos fatos em literatura da melhor qualidade, do bom comportamento em viagens de avião à cebola anti-lágrimas, da corrupção em Brasília a macacos pintores. “Uma Autobiografia Literária: o texto, ou: a vida”: esta obra mistura autobiografia – a opção paralela pela medicina, o acidente de carro que quase o matou – com uma antologia de seus grandes momentos – seja como romancista, contista ou cronista. A obra ainda apresenta textos raros, alguns escritos ainda na adolescência de Scliar – um dos mais prestigiados escritores brasileiros contemporâneos.
Redescobrindo Scliar | Luís Augusto Fischer relembra “A Majestade do Xingu”

Lançada em 1997, “A Majestade do Xingu” é a obra que o escritor e professor gaúcho Luís Augusto Fischer comenta em sua participação para a série “Redescobrindo Scliar”. Para Fischer, a força do romance está em um protagonista “atormentado pelas fantasias e responsabilidades que pesam sobre um judeu, sobre um imigrante, sobre um fracassado, cuja história inventada nos encanta e nos entristece, como é próprio da grande arte”. Boa leitura! •••••••••••• “Publicado em 1997, A majestade do Xingu se passa na capital paulista, onde o protagonista desenrola sua medíocre vida, contrastada, em suas lembranças, com a marcante trajetória de seu conterrâneo e êmulo Noel Nutels. O livro foi muito lido, na época de seu lançamento, como sendo uma biografia romanceada de Noel Nutels, médico já mitológico da vida brasileira, um dos mais destacados homens de inteligência letrada que se dedicaram aos índios brasileiros. Certo, há ali toda uma reconstrução da vida de Noel; mas o romance não é sobre Noel Nutels, mas sobre o narrador, que é personagem e toma a palavra para relatar sua vida. Ele é um sujeito numa cama de hospital, com seus 60 e tantos anos; um solitário, abandonado pela esposa (que migrou para Israel depois de haver constatado o fracasso do casamento dos dois e depois de haver educado o único filho dos dois) e pelo filho, emigrado para a França, fugindo da ditadura militar brasileira, e lá aclimatado. É um imigrante judeu russo, que chegou ao Brasil após fugir, com a família, dos horrores que se seguiram à instalação da ditadura soviética. Internado em hospital, ele fala sem parar para um médico que o atende, desfiando suas memórias. Faz a contabilidade de sua miserável vida: comerciante de uma lojinha medíocre no bairro paulistano do Bom Retiro, ironicamente chamada A majestade, passou a vida na sombra, lendo em vez de trabalhar na loja, e sem ter cumprido com a promessa que fizera ao pai de estudar para ser médico e assim fazer-se na vida. Resultou que apenas herdou a loja de outro judeu, que se afeiçoara a ele. Walter Benjamin já havia detectado com precisão a força das narrativas feitas por alguém que está cara a cara com a morte. Só nesta hora, disse, a voz narrativa adquire todas as condições para dizer a verdade fulminante e dura, que advém do supremo instante da vida, a véspera da morte. Precisamente aí está o centro do acerto de Scliar, neste romance. A vida e a obra de Noel sempre o fascinaram, mas ele não encontrava meios de contar a história com a contundência necessária. Agora descobriu: pôs em cena um narrador à beira da morte, que imigrou com Noel da Rússia, no mesmo navio. Para seu desconsolo, mal chegados ao Brasil, Noel seguiu seu destino, no Nordeste brasileiro, ao passo que o narrador, por decisão do pai, se dirigiu a São Paulo, onde a fortuna aparentemente os aguardava. O narrador passa toda a sua irrelevante vida acompanhado pela lembrança e pela sombra de seu amigo Noel, a quem jamais reencontrou em vida: Noel famoso, amigo de gente importante, autor de seu destino; o narrador um medíocre, sempre atrás do balcão, lendo à toa, amigo de ninguém, vítima de seu destino. Noel foi um homem, comprando as brigas que cabia comprar para agir sobre o mundo; o narrador foi um arremedo de homem, vivendo sua existência secundária, subordinada, medrosa. E aí está a força do romance, precisamente na vida deste pobre ser, atormentado pelas fantasias e responsabilidades que pesam sobre um judeu, sobre um imigrante, sobre um fracassado, cuja história inventada nos encanta e nos entristece, como é próprio da grande arte”. LUÍS AUGUSTO FISCHER