Redescobrindo Scliar | Entre o imaginário infantil e o conflito identitário judaico

“A Guerra no Bom Fim” é um clássico de Moacyr Scliar que trata, entre outros temas, sobre o imaginário infantil e o conflito identitário judaico. E é a partir dessas duas perspectivas que a doutoranda em letras da UFRGS, Christini Roman de Lima comenta o célebre livro do escritor na nossa série Redescobrindo Scliar. Confiram, abaixo, o texto completo! •••••••••••• A Guerra no Bom Fim é o romance de estreia de Moacyr Scliar. Ele foi publicado no ano de 1972 e retrata a trajetória de formação de Joel, um judeu pertencente à primeira geração de imigrantes nascidos no Brasil, que procura encontrar o seu lugar entre as tradições judaicas e a cultura do país de acolhimento. A Guerra no Bom Fim, em sua primeira edição, era composta por quatro partes: a infância do protagonista – sem título; a juventude – “A Guerra no Morro da Velha”; e a vida adulta – dividida em: “A Guerra em Israel ou o progresso do peregrino”; e “A guerra na unidade coronária”. Posteriormente a obra foi modificada, sendo mantida apenas a parte inicial. A trama da primeira edição discorre sobre o imaginário e os conflitos do menino (como a morte prematura de seu irmão, o antissemitismo e a guerra), passa pela crise identitária do jovem e aporta na busca do homem por suas origens – as quais se desdobram no reflexo de Joel sob o rosto de um palestino, Abu Shihab, e no reencontro com o Bom Fim. O romance de Scliar começa em meio à Segunda Guerra Mundial – a trama inicia no ano de 1943. A guerra está associada ao imaginário infantil de Joel e é, deste modo, abordada apenas pelo ângulo do imaginário, mas, ainda assim, demonstra os efeitos do conflito na formação do garoto e em toda uma geração de judeus que não estavam diretamente envolvidos no evento, mas sofreram as repercussões advindas dele. O enredo, em sua primeira parte, é fortemente marcado pelo fantástico, já que a história é construída sob a perspectiva de Joel criança e conta com um narrador discreto, colado ao protagonista. Portanto, na primeira parte do enredo, a narrativa se dá através do olhar do menino sobre o mundo a sua volta. No segundo momento, o texto acompanha a perspectiva do jovem Joel e, consequentemente, ganha aspecto realista. A guerra, além disso, é um elemento de grande importância no romance, sendo que está presente na primeira parte enquanto elemento conversor da imaginação do garoto: é o motor do imaginário infantil de Joel e representa papel fundamental na formação do sujeito. Na primeira edição, de 1972, a guerra também aparece na parte final, no “eterno retorno” da história em que o homem descobre-se em sua peregrinação, sendo que a guerra caracteriza-se novamente como fundamental na formação do menino Abu Shihab, o “outro” de Joel. Outro elemento crucial na intriga de A Guerra no Bom Fim diz respeito à angústia identitária, essa questão atravessa a obra de Scliar e é parte fundamental da trajetória do povo judeu, conforme destaca Hannah Arendt (1979, p. 19): “em parte alguma e em tempo algum depois da destruição do Templo de Jerusalém (no ano 70) os judeus possuíram território próprio e Estado próprio; sua existência física sempre dependeu da proteção de autoridades não-judaicas”. Por não disporem de um território e Estado próprios, os judeus passam a viver o dilema entre a assimilação e a marginalização. Este dilema é caracterizado, no enredo de Scliar, através da migração judaica, retratado por meio da família de Joel, composta por Leão e Pessl, seus avós, Samuel e Shendl, seus pais, Nathan, seu irmão, e Malke Tube, a égua da família. Leão e Pessl, buscando fugir do clima, da miséria e dos pogroms da Rússia czarista, partem com a família para o sul do Brasil, incentivados pelas promessas de um futuro melhor e pela perspectiva oferecida pela Jewish Colonization Association de tornarem-se lavradores nas colônias de Quatro Irmãos, no Rio Grande do Sul. Leão e família deixam a Rússia para tomar posse de uma gleba de terra na colônia de Filipson, entretanto, mostraram-se inaptos para vida rural. Leão era alfaiate, “sabia manejar agulha e linha, não a enxada”. A promessa inicial não se concretiza e, mais uma vez, a família tem de “levantar âncoras” rumo à urbana Porto Alegre e ao bairro do Bom Fim. Da promessa migratória de Filipson resta apenas a égua Malke Tube – que apareceu nas terras de Leão “como milagre”: “a primeira dádiva que receberam” (1972, p. 13). Malke Tube, outrora a égua sensual, debochada e “Maliciosa”, tornara-se, para eles, o símbolo da esperança de uma vida promissora, o último vestígio das colônias que motivaram a migração. Esta “primeira dádiva” – insígnia da “Fortuna”, ou seja, do destino venturoso que “estava-lhes escrito” – concedida à família, no entanto, tem de ser açoitada para “gerar frutos” e, ainda assim, jamais se entrega plenamente a eles. Samuel, por sua vez, pertence à segunda geração de judeus imigrantes e, mesmo nascido na Rússia, passa a maior parte de sua vida no Brasil –era muito novo quando deixou seu país de origem –, o que o faz assimilar alguns traços da cultura local, embora as tradições judaicas imperem em sua formação. Samuel é casado com Shendl e tem dois filhos: Joel e Nathan. A família é pobre; vive modestamente com o dinheiro produto das “andanças” de Samuel que, “mascate”, vendia a prestação para uma clientela nem sempre muito receptiva. No Bom Fim as famílias judias eram muito próximas. No entanto, o bairro não era uma comunidade unicamente judaica; nele havia uma gama de imigrantes de várias origens. Conviviam ainda com os moradores da Colônia Africana e do Morro da Velha. A narrativa apresenta um paralelo entre as comunidades judaica e africana, por, em um primeiro momento, serem vítimas de problemas comuns – como o estigma da perseguição a que estavam submetidos historicamente e o dilema social da pobreza. Joel e o frágil Nathan são os primeiros integrantes da família a nascer no Brasil; eles não

Redescobrindo Scliar | Luís Augusto Fischer relembra “A Majestade do Xingu”

Lançada em 1997, “A Majestade do Xingu” é a obra que o escritor e professor gaúcho Luís Augusto Fischer comenta em sua participação para a série “Redescobrindo Scliar”. Para Fischer, a força do romance está em um protagonista “atormentado pelas fantasias e responsabilidades que pesam sobre um judeu, sobre um imigrante, sobre um fracassado, cuja história inventada nos encanta e nos entristece, como é próprio da grande arte”. Boa leitura! •••••••••••• “Publicado em 1997, A majestade do Xingu se passa na capital paulista, onde o protagonista desenrola sua medíocre vida, contrastada, em suas lembranças, com a marcante trajetória de seu conterrâneo e êmulo Noel Nutels. O livro foi muito lido, na época de seu lançamento, como sendo uma biografia romanceada de Noel Nutels, médico já mitológico da vida brasileira, um dos mais destacados homens de inteligência letrada que se dedicaram aos índios brasileiros. Certo, há ali toda uma reconstrução da vida de Noel; mas o romance não é sobre Noel Nutels, mas sobre o narrador, que é personagem e toma a palavra para relatar sua vida. Ele é um sujeito numa cama de hospital, com seus 60 e tantos anos; um solitário, abandonado pela esposa (que migrou para Israel depois de haver constatado o fracasso do casamento dos dois e depois de haver educado o único filho dos dois) e pelo filho, emigrado para a França, fugindo da ditadura militar brasileira, e lá aclimatado. É um imigrante judeu russo, que chegou ao Brasil após fugir, com a família, dos horrores que se seguiram à instalação da ditadura soviética. Internado em hospital, ele fala sem parar para um médico que o atende, desfiando suas memórias. Faz a contabilidade de sua miserável vida: comerciante de uma lojinha medíocre no bairro paulistano do Bom Retiro, ironicamente chamada A majestade, passou a vida na sombra, lendo em vez de trabalhar na loja, e sem ter cumprido com a promessa que fizera ao pai de estudar para ser médico e assim fazer-se na vida. Resultou que apenas herdou a loja de outro judeu, que se afeiçoara a ele. Walter Benjamin já havia detectado com precisão a força das narrativas feitas por alguém que está cara a cara com a morte. Só nesta hora, disse, a voz narrativa adquire todas as condições para dizer a verdade fulminante e dura, que advém do supremo instante da vida, a véspera da morte. Precisamente aí está o centro do acerto de Scliar, neste romance. A vida e a obra de Noel sempre o fascinaram, mas ele não encontrava meios de contar a história com a contundência necessária. Agora descobriu: pôs em cena um narrador à beira da morte, que imigrou com Noel da Rússia, no mesmo navio. Para seu desconsolo, mal chegados ao Brasil, Noel seguiu seu destino, no Nordeste brasileiro, ao passo que o narrador, por decisão do pai, se dirigiu a São Paulo, onde a fortuna aparentemente os aguardava. O narrador passa toda a sua irrelevante vida acompanhado pela lembrança e pela sombra de seu amigo Noel, a quem jamais reencontrou em vida: Noel famoso, amigo de gente importante, autor de seu destino; o narrador um medíocre, sempre atrás do balcão, lendo à toa, amigo de ninguém, vítima de seu destino. Noel foi um homem, comprando as brigas que cabia comprar para agir sobre o mundo; o narrador foi um arremedo de homem, vivendo sua existência secundária, subordinada, medrosa. E aí está a força do romance, precisamente na vida deste pobre ser, atormentado pelas fantasias e responsabilidades que pesam sobre um judeu, sobre um imigrante, sobre um fracassado, cuja história inventada nos encanta e nos entristece, como é próprio da grande arte”. LUÍS AUGUSTO FISCHER

Redescobrindo Scliar | O universo nas ruas do mundo

Consagrado em 2003 com o Prêmio Jabuti por “A Margem Imóvel do Rio”, o escritor Luiz Antônio de Assis Brasil participa da série “Redescobrindo Scliar” com uma detalhada análise sobre a vida e a obra de Moacyr. A retrospectiva  remonta às temáticas que norteavam os escritos de Scliar e à influência literária exercida por ele com suas mais de 80 obras publicadas. Confiram abaixo o texto de Assis Brasil! ••••••••••••   O UNIVERSO NAS RUAS DO MUNDO   Temos de acreditar no livre-arbítrio. Não temos outra escolha.                    Isaac Bashevis Singer A vontade conduz uma vida Uma história, quando avaliada do fim para o início, apresenta apenas um caminho possível, isto é, aquele que, linearmente, conduz às circunstâncias que encontramos no seu término. Essa rota torna-se então, por uma espécie de mágica, na única e inevitável. O protagonista “não poderia” seguir outro rumo senão aquele que seguiu. Já quando uma história é relatada do início para o fim, ela apresenta em seu percurso inúmeras possibilidades, vários cruzamentos, acessos secundários, descobertas, decisões melindrosas, variantes inesperadas. Essas idéias surgem quando se reflete sobre itinerário existencial e literário que levou um menino, filho de imigrante da Bessarábia, e criado no bairro judaico de Porto Alegre, a atingir a Academia Brasileira de Letras, a mais vernácula de nossas instituições. Se pensamos nessa história pessoal pela ordem inversa, tudo fica muito simples: ele atingiu a Academia, em seu caso, porque é um grande escritor brasileiro, e é um grande escritor porque muito leu e muito escreveu, e se muito escreveu e leu − e isso deu resultado −, é porque tinha um talento superior para a literatura, talento esse que já transparecia na escola, quando ganhou um concurso literário, fez as primeiras redações. Já em casa permitiam-lhe o acesso a uma boa biblioteca, e ao nascer contemplaram-no com um livro de presente. Nessa ordem contrária à linearidade cronológica e crescente, a história torna-se inexorável − mas de certo modo, nós a trivializamos. Quero propor o método mais verdadeiro e talvez mais cativante: aquele que irá descobrindo o surgimento de uma vocação e a prevalência de uma vontade absolutamente determinada. O protagonista dessa história é Moacyr Scliar. Sua vontade é que orientou seus passos, sua vontade é que determinou suas escolhas, e foi sua vontade, enfim, que “fez” a sua vida. Não estou pensando, por óbvio, no fatídico sintagma “poder da vontade”, tão a gosto das doutrinas fascistas; falo, aqui, de uma determinação serena, que não o cegou nem o transformou num celerado que luta por um ideal abstrato e inalcançável − bem diverso, portanto, de uma de suas célebres personagens, o  sonhador Capitão Birobidjan, de O exército de um homem só. A determinação de Moacyr era a de ser um escritor. Não apenas um escritor para seus pares ou para o quarteirão em que caminhou sua infância. Queria ser um escritor de verdade. Para isso  impôs-se privações e foi obrigado a abdicar de tudo aquilo que faz a delícia de quem saboreia por completo a vida. Creio, entretanto, que estou antecipando coisas. Vamos começar pelo princípio − e enfrentemos as imprevisibilidades. No Bom fim, o começo Hoje com certa crise de identidade e bastante descaracterizado sob o aspecto arquitetônico, o bairro do Bom Fim abrigava, há seis décadas, a maior parte das moradas de judeus imigrados no século 20. Havia lojas modestas, algum comércio,  fábricas de móveis e pequenas confecções. As casas eram baixas e as calçadas ainda apresentavam aquelas lajes retangulares de arenito rosa, que se partiam ao menor peso e eram difíceis de reparar. As lojas persistem, algo modernizadas, e o pequeno comércio foi substituído principalmente pelos bares. Na verdade, o Bom Fim transformou-se no bairro da boemia porto-alegrense. Ali pontifica o Ocidente, algo ruidoso, algo contestador e meio ousider, e que nos últimos tempos protagoniza festejados encontros literários. Nesse bairro de Porto Alegre nasceu Moacyr, em 1937. O nome indígena, que evoca o filho de Iracema, de José de Alencar, foi uma homenagem ao escritor cearense; o Jaime, nome intermediário, é usual entre a comunidade judaica. Quando Moacyr nasceu, Erico Verissimo tinha 32 anos e já publicara, entre outras obras, Clarissa, Caminhos cruzados, Música ao Longe e Um lugar ao sol. Trabalhava na Livraria do Globo, e um ano antes lhe nascera o filho Luis Fernando. O papai José Scliar possuía uma fábrica de ombreiras de lã e, depois, de acolchoados. A mãe, Sara Slavutzki, era professora. A casa, já velha, e em cujo forro os ratos apostavam corridas, tinha entretanto um belo pátio tapado por um matagal que, no dizer do escritor,  transformava-se em outro planeta, num mar em que ele velejava ou numa floresta africana. No Bom Fim o menino Moacyr gastava as solas de seus sapatos, indo à escola, maravilhando-se com as fachadas em que brilhavam os anúncios luminosos. Nas janelas superiores habitava, às vezes, uma gaiola com canários belgas. Do outro lado da avenida Oswaldo Aranha, o majestoso parque da Redenção respirava seu frescor vegetal. Na primavera, os odores confusos das flores vinham até a calçada. Não eram apenas impressões visuais e olfativas; as auditivas tornaram-se importantes. E o que Moacyr escutava? Tentemos imaginá-lo num entardecer de verão porto-alegrense, quando o calor amainava sua tirania de fogo e as pessoas dispunham cadeiras porta afora, à busca de uma brisa que, em geral, não vinha. Ali conversavam sobre suas experiências da travessia do Atlântico, as durezas do trabalho, o acolhimento da nova pátria. Recuperavam, também, as histórias de suas terras onde caía a neve e que ainda eram vivas nas paisagens da memória: as hostilidades sofridas na Rússia e, mais perto de nós, as agruras que viviam os parentes e amigos submetidos a regimes discricionários e ferozes. Senhores plácidos, muitos ainda de barba talmúdicas e solidéu, podiam não notar o menino que passava a seu lado, magro, com um olhar algo desamparado, e que os escutava. Eram fragmentos de histórias, algumas mais complexas, outras mais simples, mas sempre derivadas da lembrança. E uma lembrança é sempre a lembrança de

Redescobrindo Scliar | A história dos judeus no Brasil

A professora, escritora e pesquisadora Regina Zilberman é a mais nova convidada da nossa série “Redescobrindo Scliar”. Recuperando o clássico “O Centauro no Jardim”, Regina usa o tema da imigração para refletir sobre a literatura e o legado de Moacyr Scliar. Boa leitura! •••••••••••• O ROMANCE DE MOACYR SCLIAR E O TEMA DA IMIGRAÇÃO Tendo publicado seu primeiro livro em 1962, as Histórias de um médico em formação, foi na década seguinte que Moacyr Scliar produziu a maior parte de sua obra de ficção. Constitui-se de romances (A guerra no Bom Fim, O exército de um homem só, Os deuses de Raquel, (O ciclo das águas), Mês de cães danados, Doutor Miragem, Os voluntários, O centauro no jardim, A estranha nação de Rafael Mendes, Cenas da vida minúscula, Sonhos tropicais), novelas (Max e os felinos, Cavalos e obeliscos, A festa no castelo), livros de contos (Histórias de um médico em formação, Tempo de espera, O carnaval dos animais, Os mistérios de Porto Alegre, A balada do falso Messias, Histórias da terra trêmula, O anão no televisor, O olho enigmático, A orelha de Van Gogh, Contos reunidos), narrativas para crianças e jovens (Memórias de um aprendiz de escritor, No caminho dos sonhos, O tio que flutuava, Introdução à prática amorosa, Os cavalos da república), ensaios (A condição judaica, Do mágico ao social, Cenas médicas, Medicina e literatura) e crônicas (A massagista japonesa, Se eu fosse Rothschild, Dicionário do viajante insólito). Desse total, três títulos foram lançados nos anos 60, seis, nos anos 90 (muitos deles, contudo, coletâneas ou rearranjos de textos publicados anteriormente, como ocorre aos Contos reunidos, Se eu fosse Rothschild e Dicionário do viajante insólito), circunstância que, do ponto de vista histórico-literário, posiciona-o como um escritor das décadas de 70 e 80. Durante os anos 1970 a ficção latino-americana deu vazão ao que se classificou como “realismo mágico”. No Brasil, foram em particular as sugestões associadas ao gênero fantástico que predominaram, conferindo peculiaridade à literatura nacional. Moacyr Scliar, optando por introduzir em seus romances ações que poderiam ser consideradas extraordinárias, constituiu-se de imediato numa das principais expressões da literatura fantástica no país, gênero de que continua sendo um dos principais adeptos e representantes, conforme se constata em um de seus últimos romances publicados, Cenas da vida minúscula, de 1991. Moacyr Scliar dedica a maior parte de seus romances (sete, num total de onze obras) à narração do processo migratório judaico da Europa para o Rio Grande do Sul. Alinhadas as obras num prisma cronológico, eles contam uma história que inicia com a decisão de deixar a terra natal, prossegue com a apresentação dos problemas relativos à adaptação ao novo mundo e chega à análise das conseqüências da transferência geográfica e cultural sobre os descendentes das famílias originais. O primeiro passo é a vinda dos protagonistas da Europa para o Brasil, a imigração propriamente dita. A narrativa desse processo é mais rara, aparecendo em (O ciclo das águas), pelo lado dos textos centrados em personagens judias, e Max e os felinos, novela não explicitamente de tema judaico. Eles abandonam seu lugar de origem por razões bastante opostas: Max foge do nazismo, e Ester é enganada pelo noivo, que a introduz na prostituição; mas experimentam uma situação similar: necessitam lutar arduamente por sua sobrevivência, enfrentando inimigos e preconceitos, até se afirmarem perante os outros e perante si mesmo.O resultado de sua trajetória existencial também diverge: Max deseja o restabelecimento da justiça e, para tanto, arrisca sua liberdade, sendo, enfim, bem sucedido; Ester, por seu turno, quer enriquecer e garantir a educação de seu filho, Marcos, o que a leva ao aviltamento pessoal e mesmo à insanidade. A segunda etapa do processo de aculturação dos judeus ao solo brasileiro aparece em todos os romances, pois é essa a situação que efetivamente interessa ao ficcionista. Nestes romances – a saber, A guerra no Bom Fim, O exército de um homem só, Os deuses de Raquel, (O ciclo das águas), O centauro no jardim, A estranha nação de Rafael Mendes e Cenas da vida minúscula, os heróis são, na maioria, filhos de imigrantes: Joel, Meyer ou o Capitão Birobidjan (embora também um imigrante), Raquel, Marcos, Guedali e Rafael Mendes, respectivamente os protagonistas das obras citadas, são brasileiros, porém ainda profundamente envolvidos com a tradição européia e judaica segundo a qual são educados. O resultado é uma divisão interior que os dilacera, provocando a infelicidade. Ao choque de gerações, que é, simultaneamente, um choque de culturas às vezes até antagônicas, soma-se outra dificuldade: todos estes indivíduos, voluntariamente ou não, apostaram sua existência nos valores burgueses. Seu fito maior é enriquecer ou, pelo menos, ter sucesso financeiro e profissional, para apagar, num único golpe, a miséria da infância e os laços com a origem judaica. O fato de todos os protagonistas serem judeus não é mera coincidência. Moacyr Scliar procura extrair dessa circunstância, segundo a qual o judeu é, por razões culturais e históricas, um ser que experimenta a diferença de modo radical, a substância para seus livros. Por isso, suas personagens não conseguem conviver com o passado de que são fruto, nem integrar-se ao presente que contradiz suas raízes. O resultado é uma profunda instabilidade emocional, gerando a permanente insatisfação e o sentimento de inautenticidade, a ser combatido ao preço de uma mutação interior, traduzida às vezes numa alteração externa, como ocorre ao Guedali, de O centauro no jardim, ou ao Naum, de Cenas da vida minúscula. Neste grupo de narrativas, o elemento fantástico aparece de modo mais patente. Como o fantástico está ausente nas novelas do escritor o protagonista não tem origem hebraica, fica claro o sentido que tem: é produto da situação ambivalente que experimenta o tipo especial de herói judeu criado pelo ficcionista, qual seja, o indivíduo repartido que não consegue consolidar-se intimamente sem renunciar aos valores que igualmente preza. Funciona, assim, como a possibilidade de representar de forma mais visível os dilemas interiores das personagens, simbolizando seguidas vezes as divisões de que se falou acima. Os melhores exemplos provêm, outra vez,

Redescobrindo Scliar | Antonio Carlos Secchin e o amigo Moacyr Scliar

Membro da Academia Brasileira de Letras, o poeta, ensaísta e crítico literário Antonio Carlos Secchin é o mais novo convidado da nossa série “Redescobrindo Scliar”. Recuperando toda a influência literária e humanista que o escritor teve em sua carreira, ele fala sobre os momentos que compartilhou com Scliar, além, claro, das obras que mais marcaram a sua trajetória. Confira abaixo! •••••••••••• “Moacyr Scliar foi exemplo notável do consórcio entre homem de letras e homem de ação. Ganhador dos mais importantes prêmios literários do país, autor de vasta e qualificada obra, com mais de 80 títulos, traduzida para 10 idiomas, nunca se esqueceu dos compromissos em prol da melhoria das condições de vida da população brasileira, sobretudo na área de sua especialidade, a saúde pública. Relembro o encanto com que descobri sua literatura, quando, ainda estudante secundarista, tive a oportunidade de ler O carnaval dos animais, de 1968, dedicado à esposa e companheira Judith, com quem celebraria, em 2011, 46 anos de harmonioso convívio. No meu acervo, contabilizo 25 títulos de Scliar, vários deles, decerto de fatura literária ainda mais elaborada do que a desse livro. Recordemos o autor de tantas obras fundamentais na literatura brasileira, como a trilogia judaica integrada por A guerra no Bom Fim, O exército de um homem só e Os deuses de Raquel. Em minha memória afetiva, porém, nenhuma delas suplanta o impacto proveniente da descoberta de Scliar em O carnaval dos animais. Encontro-me, aliás, em boa companhia, pois o consagrado ensaísta e historiador Alfredo Bosi foi buscar nessa obra um conto – “Pausa” – que considera um dos grandes momentos de nossa narrativa curta do século XX. Sua estreia de fato não ocorreu em 1968, e sim em 1962, em livro que considerou apenas uma aprendizagem: Histórias de médico em formação, a rigor, histórias de um escritor em formação. Não me cansei de peregrinar por numerosos sebos do Brasil, na época pré-Internet, até finalmente localizar e adquirir o livrinho. Muitos anos mais tarde, fui contemplado com a dedicatória: “Para Antonio Carlos Secchin, que valoriza este livro mais que o próprio autor, a homenagem do Moacyr”. Na dedicatória impressa na obra, lemos: “A meus pais, que me fizeram médico em formação –cita outras pessoas e conclui: “aos colegas da União Nacional de Estudantes de Medicina/…/companheiros de luta por um mundo melhor”.Nítido desenho de um compromisso ético que desenvolveu a vida inteira. Mas hoje quero evocar, principalmente, o amigo Moacyr Scliar. Quando comparecia às sessões acadêmicas, ao menos duas vezes por mês, e quase sempre a caminho de uma palestra em outro estado ou em outro país, ele sentava-se à minha direita, e aproveitávamos o reencontro para pôr em dia assuntos na maioria relacionados à vida acadêmica. Este detalhe espacial foi registrado numa dedicatória: “Para Antonio Secchin, de seu colega, vizinho de bancada, amigo e fã incondicional Moacyr Scliar”. Curiosamente, tal dedicatória, alusiva à Academia, encontra-se no volume O menino e o bruxo , que ficcionaliza episódios da vida e da obra de Machado de Assis, primeiro presidente da ABL. No – infelizmente – pouco tempo que conviveu entre os acadêmicos, revelava-se sempre um apaixonado pela Casa, na busca incessante de mecanismos que tornassem mais visíveis aos olhos do público o intenso trabalho cultural desenvolvido pela instituição. Dizia que, pelo prestígio centenário, a ABL deveria participar de modo ainda mais incisivo nos debates culturais do país e chegou a sugerir que os acadêmicos elaborassem uma espécie de cânone para ser distribuído às escolas brasileiras. Estive a seu lado em vários seminários, congressos e simpósios literários. Nunca recusava convites, afirmando ser a missão do escritor chegar ao público, para que o público pudesse chegar ao escritor. A urgência da vida parecia exigi-lo e exauri-lo em tempo integral. Jamais se furtou ao bom combate, nas inúmeras crônicas, nos contos e romances. O equilíbrio e a inteligência pautavam suas intervenções em público. Elegante, sóbrio e talentoso na vida e na arte assim foi Scliar. Para aferir a importância de seu legado, observemos que, em rápida pesquisa num mecanismo de busca na Internet(Google), encontramos nada menos do que 956 mil entradas para o nome “Moacyr Scliar”. Parodiando o título de seu último romance – Eu vos abraço, milhões (saudado como obra-prima por Carlos Heitor Cony) – poderíamos em sua memória dizer: Nós te abraçamos, aos milhares.”   ANTONIO CARLOS SECCHIN

Redescobrindo Scliar | Antônio Torres: qual Moacyr Scliar você profere?

Moacyr Scliar publicou dezenas romances ao longo de sua extensa carreira, mas o que também podemos dizer de sua vertente contista, cronista, ensaísta e infanto-juvenil? Em mais uma edição da nossa série “Redescobrindo Scliar”, o escritor Antônio Torres convida o público conhecer o Moacyr Scliar que vai muito além dos celebrados romances que conquistaram diversas gerações. Para ler A Noite em que os hotéis estavam cheios, conto de Moacyr citado por Antônio Torres, basta clicar aqui. Boa leitura! •••••••••••• “Para começo de conversa, me pergunto: – Qual Moacyr Scliar você prefere? Em sendo essencialmente um romancista, minha escolha natural deveria ser um de seus romances, afinal nesse gênero ele se desempenhou de forma poderosa, legando-nos 14 títulos memoráveis. Dois deles foram adaptados para o cinema. Outro (O centauro no jardim) foi incluído na lista dos 100 melhores livros de temática judaica publicados nos últimos 200 anos. Logo, o Scliar romancista excele, se impõe, ganha de braçada de muitos de nós.   Mas o que dizer do Scliar contista, cronista, ensaísta e autor de histórias infanto-juvenis?   Sim, venho há dias a pular de um livro de Scliar a outro, me recriminando por ainda não haver lido todos os seus livros, mas me prometendo que chegarei lá, se vida ainda tiver para dar conta de tudo que ele escreveu, numa produção extraordinária, tanto em qualidade quanto em quantidade. De livro em livro, me deparo em um volume em capa dura intitulado Contos reunidos (Companhia das Letras, 1995). E busco uma historinha de Scliar que nunca me saiu da memória. Mas não a achei. Então me lembrei que a li pela primeira vez no livro Contos para um Natal brasileiro, de 1996, feito pela Relume-Dumará num projeto solidário à campanha do Natal sem Fome,  criada por Betinho (Herbert de Souza), e do qual participaram, em mutirão, de Antonio Callado a Rubem Fonseca, de João Ubaldo Ribeiro a Paulo Coelho, de Eric Nepomuceno a Luís Fernando Veríssimo, de Lygia Fagundes Telles a Nélida Piñon e etc. O primeirão da turma é o Scliar mesmo, que abre a antologia com A noite em que os hotéis estavam cheios. Em poucas linhas, ele deixa a marca da sua peculiaríssima verve e originalidade, ao contar como foi o singelo Natal de Maria e José. E bem ao seu estilo de fazer que um conto se pareça uma crônica e vice-versa.  Enfim, é um texto breve que merece ser publicado na imprensa em todos os Natais, mas que pode ser lido a qualquer dia do ano, com um prazer inenarrável.” ANTÔNIO TORRES

Redescobrindo Scliar | O humor judaico de Moacyr Scliar segundo Daniel Weller

Dando sequência à série “Redescobrindo Scliar”, onde convidamos amigos e colegas para comentar obras de Moacyr Scliar que merecem ser redescobertas pelo público, o professor Daniel Weller fala sobre “Do Éden ao Divã”, obra que ganhou uma nova edição em novembro de 2017. Organizado por Moacyr Scliar, pelo poeta argentino Eliahu Toker e pela socióloga Patricia Finzi, o livro reúne histórias e anedotas que celebram o humor judaico, “o humor do sorriso e não da gargalhada, um humor filosófico e que faz pensar”. Confira! •••••••••••• “Como parte das comemorações dos 80 anos do nascimento do escritor Moacyr Scliar, em novembro do ano passado, foi relançada Do Éden ao Divã: Humor Judaico (1990). Organizada por Scliar, pelo poeta argentino Eliahu Toker e por Patricia Finzi, socióloga e diretora da extinta editora Shalom, a coletânea teve seis edições e ficou 35 semanas no topo da lista dos livros mais vendidos, ultrapassando até mesmo Paulo Coelho. É consenso de que Scliar é filiado à tradição dos velhos contadores de histórias da Europa Oriental, que escreviam em iídiche e tinham um pé no mundo secular e o outro no Chassidismo, movimento místico judaico centrado na alegria para a transcendência e aproximação a D´us. Dos grandes escritores do Leste Europeu, o maior foi indiscutivelmente Sholem Aleichen (1859 – 1916) que, devido aos progroms, foi obrigado a emigrar para Nova York, levando na bagagem as origens de muitos de nós: as pequenas shtetls, onde moravam os judeus que usavam um humor autodepreciativo e irreverente como estratégia de sobrevivência, amenizando a dureza do cotidiano. Scliar destaca no livro que o riso está relacionado com o método milenar de estudo do Talmude e da lógica do pilpul, caracterizada pelo excesso de raciocínio. O interesse de Scliar por refletir sobre o humor judaico que aparece em diversas crônicas, palestras e no ensaio A Condição Judaica: Das Tábuas da Lei à Mesa da Cozinha consolida-se no precioso livro Do Éden ao Divã: Humor Judaico composto por muitas histórias que retratam na prática a habilidade judaica de rir das suas próprias desgraças, uma forma inteligente de lidar com a melancolia e com a condição errante que caracterizam a etnia e a religião mosaica. “O humor judaico é demasiado rico e diversificado para ser descrito adequadamente por uma simples generalização. Os teólogos judeus costumavam dizer que é mais fácil descrever Deus em termos do que Ele não é. O mesmo processo pode ser útil para a compreensão do humor judaico. Ele não é escapista, não é grosseiro, não é cruel; ao mesmo tempo, também não é polido ou gentil”. (p. 9) Para o autor, “ao sofrimento deve o judaísmo seu humor”, caracterizado por ser “amargo, melancólico e de sorriso e não de gargalhada. Um humor filosófico, que faz pensar”. Scliar destacou que essa comicidade também está associada com a questão identitária do olhar tipicamente judeu que “vê o que os outros não veem por um olho arguto, mágico que enxerga poros nas superfícies lisas, minúsculas fissuras nos revestimentos”. Para além do arquétipo da mãe judia e do peso de ser “povo eleito”, os judeus do Leste Europeu desenvolveram um folclore típico, com seus personagens que sobreviveram e esperam pelo leitor nessa nova edição Do Éden ao Divã, atenuando a tristeza e amparando-nos na desesperança da condição humana sem perder o bom humor”. DANIEL WELLER Mestre em Literatura Brasileira (UFRGS). Autor da dissertação Monteiro Lobato: Um Homem Célebre & O Engraçado Arrependido – Aspectos de Comicidade em Cidades Mortas.

Redescobrindo Scliar | Tulio Milman relembra “Um Seder para os nossos dias”

Seder é o jantar de celebração do Pessach, a Páscoa judaica, que começa a ser celebrada ao pôr-do-sol dessa sexta-feira, 30 de março, e termina ao anoitecer de sábado, 7 de abril. Em comemoração a esse período festivo, o jornalista Tulio Milman participa da nossa série “Redescobrindo Scliar”, onde colegas, jornalistas e escritores são convidados a comentar os escritos de Moacyr Scliar que merecem ser reapreciados e redescobertos pelo grande público. Para Tulio, que agora se junta ao time de convidados já formado por Cíntia Moscovich e David Coimbra, a obra de Moacyr Scliar simboliza, entre tantas outras coisas, a universalidade de valores e princípios do judaísmo. E é a partir dessa perspectiva que ele comenta o texto “Um Seder para os nossos dias”, lançado originalmente por Scliar na década de 1980. Boa leitura! •••••••••••• “Por que esse livro é diferente dos outros livros? Moacyr Scliar não era religioso, mas lia a Bíblia e dialogava com a fé. Essa é a primeira grande inspiração que transborda de “Um Seder para os nossos dias”, 24 páginas, publicado em 1987 e ausente da maioria das listas de obras do autor. Seder é o jantar de celebração do Pessach, a Páscoa judaica. Uma vez por ano, as famílias se reúnem para relembrar a história de uma travessia fantástica: a da escravidão no Egito à liberdade. A Hagadah, livro central do Pessach, serviu de inspiração para Scliar, que se debruça sobre a tirania, a trajetória de Moisés, as 10 pragas e os 40 anos no deserto, tempo necessário para que nascesse e crescesse uma geração de homens e mulheres livres e, por isso, aptos a entrar na Terra Prometida. Consegui um exemplar amarelado, da Editora Shalom. As ilustrações de Carlos Scliar, primo de Moacyr, surgem na medida certa e com a leveza fundamental, sem jamais competir com o texto. A impressão é a de que Um Seder para nossos dias poderia ter sido escrito em 2018. Um trecho: “O deserto que hoje temos de atravessar não é uma extensão de areia estéril, calcinada pelo sol implacável. É o deserto da desconfiança, da hostilidade, da alienação de seres humanos”. Scliar não conspurca a perenidade sagrada da Hagadah, mas dá a ela uma outra dimensão universal, a do olhar sobre as injustiças, o preconceito e a xenofobia. E evoca as palavras de Deus ao fechar o Mar Vermelho sobre o exército do faraó. Livres da morte, os hebreus entoaram um hino de louvor ao seu Senhor. “Não cantareis enquanto meus outros filhos se afogam”. É linda essa passagem, quando hoje tanta gente confunde Justiça com vingança. Conta uma antiga lenda que havia, em um shtetl, pequena aldeia judaica da Europa Oriental, um ateu. Shmuel não li os livros sagrados, não rezava e não frequentava a sinagoga. Na época, ser religioso era uma regra praticamente sem margem para exceções. Um dia, Shmuel descobriu que numa aldeia distante havia um outro ateu. Viajou dois dias para conhecê-lo. Ao chegar ao local indicado, bateu na porta. Um homem velho e curvado veio abri-la. Ao fundo, Shmuel viu uma enorme biblioteca e uma mesa coberta com livros de oração. “Eu sou ateu e me disseram que aqui mora outro ateu, mas deve ter sido engano”, disse Shmuel. O dono da casa abriu um sorriso e os braços. “Você também é ateu? Entre e vamos debater sobre isso. Você certamente, assim como eu, deve ter estudado muito sobre o tema”. Scliar e sua obra simbolizam, entre tantas outras coisas, a universalidade de valores e princípios do judaísmo. Sem jamais se fechar, sem jamais esquecer que a liberdade é um caminho e que, sozinho, é impossível percorrê-lo”. TÚLIO MILMAN