Scliar Lido Por Amigos | Fábio Prikladnicki lê crônica de “A Nossa Frágil Condição Humana”

Jornalista e crítico de artes cênicas no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, Fábio Prikladnicki participa da série Scliar Lido Por Amigos recuperando uma crônica de “A Nossa Frágil Condição Humana”, coletânea de textos escritos por Scliar sobre o povo judeu lançada em 2017, integrando a programação de comemorações em homenagem aos 80 anos do escritor. Valeu pela participação, Fábio! ***** SOBRE “A NOSSA FRÁGIL CONDIÇÃO HUMANA”: Neste volume de crônicas, o leitor encontrará a sensibilidade de Moacyr Scliar a serviço da cultura, história e memória do povo judaico. Com a honestidade intelectual que lhe é característica, Scliar alia suas aspirações políticas a uma afirmação radical da tolerância. O médico e escritor contrapõe sua reflexão desapaixonada à barbárie dos fatos, mirando sem rodeios uma defesa fervorosa da paz, tão esclarecedora quanto necessária em nossos tempos. SOBRE FÁBIO PRIKLADNICKI: Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena.
Redescobrindo Scliar | Fábio Prikladnicki analisa o dever do reconhecimento em “O Ciclo das Águas”

Jornalista e Doutor em Literatura Comparada pela UFRGS, Fábio Prikladnicki comenta o romance “O Ciclo das Águas” em mais um capítulo da nossa série “Redescobrindo Scliar”. Para Fábio, essa é uma obra que representa a habilidade de Scliar em iluminar grandes questões da sociedade através da literatura. O resto ele conta no texto escrito especialmente para o site. Confiram! •••••••••••• “O Ciclo das Águas” e o dever do reconhecimento Sabia-se pouco a respeito das polacas quando Moacyr Scliar publicou o romance O Ciclo das Águas, em 1975. Na época, a coragem de abordar os mais diferentes aspectos da experiência judaica, enfrentando tabus sociais, já caracterizava a atuação do escritor que estava recém em seu quarto romance – digo “recém” porque depois vieram muitos outros. O Ciclo das Águas foi baseado no relato de uma paciente de Scliar, que atuava como médico no Lar dos Velhos, um asilo judaico localizado em Porto Alegre e em funcionamento até hoje. O próprio autor certa vez registrou que apenas mais tarde, em Buenos Aires, encontraria livros sobre o tráfico de judias da Europa para a América do Sul, onde se tornaram prostitutas. Eram agenciadas pela organização criminosa Zwi Migdal, que funcionou do século 19 até os anos 1930. No Brasil, aonde chegaram a partir de 1867, essas mulheres que fugiam do antissemitismo e da pobreza ficaram conhecidas como polacas, embora viessem também de outros países além da Polônia, usualmente enganadas pela promessa de casamento. Esther, a protagonista de O Ciclo das Águas, inspirada na história da paciente de Scliar, era uma delas. Filha de um mohel em uma aldeia da Polônia, ela se casa com o misterioso Mêndele, sujeito que foi para a América como menino e voltou homem feito, vestindo terno de casimira listrada. Promete fazer dela “rainha da América”, mas as coisas começam a ficar estranhas durante a viagem. Esther desembarca em Porto Alegre em 1929, onde passa a trabalhar em um bordel. Lá, engravida de um cliente. Seu filho, Marcos, estudará História Natural quando jovem, o que proporciona a metáfora da água, presente sob diversas formas ao longo do romance. Depois de O Ciclo das Águas, outros romances sul-americanos abordaram o tema, a exemplo de Jovens Polacas (1993), da brasileira Esther Largman, La Polaca (2003), de Myrtha Schalom, e El Infierno Prometido (2006), de Elsa Drucaroff, ambas escritoras argentinas. No Brasil, inspirou também a peça teatral carioca As Polacas – Flores do Lodo (2011), escrita e dirigida por João das Neves, exibida em Porto Alegre em 2013. E não apenas isso. João Bosco e Aldir Blanc citam as “jovens polacas” na letra da canção O Mestre-Sala dos Mares, que ganhou bela interpretação de Elis Regina em 1974, e o sambista Moreira da Silva compôs Judia Rara para uma polaca que havia sido sua amante: “A rosa não se compara / A essa judia rara / Criada no meu país / Rosa de amor sem espinhos / Diz que são meus seus carinhos / E eu sou um homem feliz”. Sob o manto da ficção, O Ciclo das Águas revela o fato de as polacas terem sido marginalizadas dentro da comunidade judaica. Tiveram de criar, por exemplo, associações de ajuda mútua para construir suas sinagogas e cemitérios, uma luta pela memória que segue até hoje por meio do trabalho de historiadores e historiadoras. Uma abordagem referencial nesse sentido está no livro Baile de Máscaras (Imago), da pesquisadora Beatriz Kushnir, além de inúmeros estudos que têm sido realizados sobre o tema. O que fica da leitura de O Ciclo das Águas é que Scliar encarnou a literatura como farol que ilumina as grandes questões da sociedade. FÁBIO PRIKLADNICKI Jornalista e doutor em Literatura Comparada (UFRGS)
Scliar Lido Por Amigos | Tulio Milman lê trechos de “Do Éden ao Divã: Humor Judaico”

Diretamente da sinagoga da SIBRA, em Porto Alegre, onde muitas vezes encontrou Moacyr Scliar, o jornalista Tulio Milman celebra a obra do escritor lendo duas divertidas anedotas da antologia “Do Éden ao Divã: Humor Judaico”. Para Túlio, os trechos escolhidos reforçam a importância do humor e o poder da palavra na construção de identidade do Judaísmo. ***** SOBRE “DO ÉDEN AO DIVÃ: HUMOR JUDAICO”: Judaísmo e humor são categorias inseparáveis. Ao longo de milênios, o povo judeu foi acumulando um verdadeiro tesouro de histórias, provérbios e anedotas, ao qual se acrescentou o trabalho de grandes escritores. Esta antologia refaz uma trajetória – batizada por risos e sorrisos – que começa na Bíblia e chega até os nossos tempos. Nestas páginas convivem Tevie, o leiteiro, e a mãe judia; Franz Kafka e Woody Allen; psicanalistas e casamenteiros. SOBRE TÚLIO MILMAN: Jornalista do grupo RBS desde 1993, onde atualmente atua como colunista e comentarista. Em mais de 20 anos de carreira, já cobriu os Jogos Olímpicos de Barcelona, Beijin e Londres, além de já ter entrevistado nomes como Mario Vargas Llosa, Michael Dell, Richard Dawkins, Salman Rushdie, Ian McEwan, Mahmoud Abbas, Luc Ferry e Carlo Rovelli. Também é autor do livro “Vença com a Mídia”.
Redescobrindo Scliar | Queres saber sobre Porto Alegre?

O ficcionista e professor Luís Roberto Amabile sempre lembra que foi Moacyr Scliar quem o apresentou à cidade de Porto Alegre. Não pessoalmente, mas através das tantas histórias que escreveu usando a capital gaúcha como cenário. Tudo começou com a novela “Mês de Cães Danados”, publicada em 1977. E o que aconteceu dali em diante? Bom, isso o Luís Roberto nos conta abaixo com a sua participação para a série Redescobrindo Scliar. Confiram! •••••••••••• Queres saber de tudo? Queres? Então eu conto. Quem primeiro me apresentou Porto Alegre foi o Moacyr Scliar. Não pessoalmente, mas através de um de seus emissários – como às vezes gosto de chamar esses seres, os personagens, a quem os escritores sopram o fôlego da vida. Encontrei o emissário quando eu era um jovem estudante universitário em São Paulo e ele já era um mendigo com uma perna defeituosa, que mora nas ruas do centro da capital gaúcha, enrolado num poncho, pedindo dinheiro em troca das histórias que conta. O ponto de encontro foi a novela Mês de cães danados (1977). O título se refere a agosto de 1961, quando, após a renúncia do presidente Jânio Quadros, houve um movimento militar para impedir a posse do vice-presidente, João Goulart, o que, por sua vez, gerou, a partir de Porto Alegre, a resistência que ficou conhecida como a “Campanha da Legalidade”. Queres saber de tudo?, pergunta o mendigo na primeira página. Da Carta de Punta del Este? Da quedado cruzeiro? Do Banco da Província? Do Simca Chambord? Das Cestas de Natal Amaral? Do considerável número de populares bradando viva Jânio? Queres saber de tudo? Queres? Eu queria. Então li e virei as páginas, uma em seguida da outra, ouvindo Mário Picuxa e sua marcante voz narrativa relatar como ele, filho de uma tradicional família dos Pampas, chegou àquela situação de morador de rua. Sim, tem a ver com o contexto da “Campanha da Legalidade”, mas não posso ir além. Para não estragar a experiência de futuros leitores-ouvinte. Posso dizer que Mês de Cães Danados é um caso exemplar de uso do recurso narrativo do flashback, que recupera eventos ou emoções referentes ao personagem. Posso dizer também que na novela o mendigo conhece um homem que pelo sotaque ele acha ser de São Paulo – passa, inclusive, a chamá-lo de Paulista. Em certo momento descreve o centro de Porto Alegre ao forasteiro: Talvez não saibas, porque não és daqui, mas esta via pública chama-se General Câmara. Eu ainda a conheço por seu nome antigo: Rua da Ladeira. É bem movimentada, como podes notar por esta gente que sobe e desce. Estamos aqui em pleno centro da cidade. Ali em baixo é a Rua da Praia, estás vendo? A Rua da Praia é a nossa principal artéria comercial Parágrafos à frente, cita também o prédio de O Correio do Povo, a Catedral, a Assembleia Legislativa, o Palácio. Eu conto então que, meses depois de ter conhecido esse emissário do Moacyr Scliar, vim ao Rio Grande do Sul pela primeira vez. Quis fugir da folia do carnaval paulistano e tomei um ônibus para Bento Gonçalves, ponto de partida de minha viagem pela Serra Gaúcha. Eu não precisava vir a Porto Alegre para tomar o ônibus de volta. Mas fiz questão. E caminhei da rodoviária até o Mercado Público. E depois pela rua da Praia, pela General Câmara. E fui conhecer o O Correio do Povo, a Catedral, da Assembleia, o Palácio… E acho que ouvi, e acho foi mais de uma vez: Queres saber de tudo, Paulista? Queres? LUÍS ROBERTO AMABILE Ficcionista e professor. Doutor em Letras pela PUC-RS.
Redescobrindo Scliar | “Meu filho, o doutor”: Judaísmo, Medicina, Psicanálise e Humor

Judaísmo, medicina, psicanálise e humor: essa é a mistura que dá o tom a “Meu Filho, o Doutor”, livro que o psicanalista Abrão Slavutsky comenta para a série Redescobrindo Scliar, onde amigos e colegas de Moacyr comentam suas obras favoritas do escritor que merecem ser sempre (re)descobertas pelo público. •••••••••••• “Meu filho, o doutor”: Judaísmo, Medicina, Psicanálise e Humor Moacyr Scliar, médico e escritor, está traduzido em dezesseis idiomas. Além disso, é um dos dez ficcionistas brasileiros mais lidos no exterior. Talvez seja o único no País a unir o conhecimento bíblico com a cultura nacional. Além de suas novelas e contos, escreveu muitos ensaios. Sempre aprendi lendo e relendo seus estudos sobre a culpa, a melancolia, a medicina, o humor judaico, a literatura. No seu livro Meu Filho, o Doutor expõe uma breve história tanto da medicina como do judaísmo. No passado, toda mãe judia sonhava em ter um filho ou um genro médico. Aliás, o título do livro é uma referência às mães, em especial às mães judias como a dele. Esse breve ensaio é uma síntese de sua tese de doutorado que defendeu na Escola Nacional de Saúde Pública do Rio de Janeiro. O primeiro capítulo é sobre às raízes históricas da cultura judaica. Destaco a palavra raízes, pois em todos os ensaios do Scliar ele busca as raízes para conhecer o máximo possível do tema investigado. A leitura de Meu Filho, o Doutor é uma breve viagem pela história do povo judeu, a história da Medicina e dos médicos judeus a partir da Idade Média. O resultado dessa dedicação, através dos séculos, foram as conquistas do Prêmio Nobel de Medicina. Cerca de 30% dos ganhadores são médicos judeus. Este é um dado significativo considerando-se que apenas 0,3% da população mundial é judia. Se tivesse que destacar dois heróis do livro, entre tantos, seriam Maimônides e Sigmund Freud, a quem o autor dedica dois capítulos. Moses ben Maimon, nome completo de Maimônides, foi o médico-filósofo judeu mais famoso da Idade Média. Foi um herói também no mundo árabe, tanto que era o médico do Sultão, de sua família e de toda a corte do Cairo. Ademais, influenciou São Tomás de Aquino quanto às relações entre a Fé e a Razão. Além de ser uma referência médica, foi um intérprete essencial do Talmud até os dias atuais. O outro herói para Moacyr Scliar foi Sigmund Freud, a quem dedica dois capítulos do livro: “Psicanálise e judaísmo” e “Psicanálise, judaísmo, literatura”. O escritor nascido no Bom Fim que conquistou o mundo era um entusiasta de Freud, sem perder sua capacidade crítica. Teve vários analistas e pôde vivenciar a importância da análise. Conheci Freud na biblioteca do Scliar, ele tinha a coleção completa da Imago que seu pai havia comprado de presente a seu pedido. Meu Filho, o Doutor tem ainda muito do humor judaico sobre as mães judias, seus filhos e piadas sobre os médicos. Sim, porque ao lado da exaltação da profissão de curar tem a rebeldia do humor. Enfim, num livro de pouco mais de cem páginas, Moacyr Scliar escreve uma síntese de algumas de suas principais paixões: Medicina, Judaísmo, Psicanálise, Literatura e Humor. ABRÃO SLAVUTSKY Psicanalista
Redescobrindo Scliar | Moacyr Scliar também era cirurgião… das palavras

Embora médico, Moacyr Scliar não atuava como cirurgião, o que nunca impediu que o doutorando em Escrita Criativa pela PUCRS, Daniel Gruber, considerasse o escritor como tal. “O Scliar escritor era, sem dúvida, cirúrgico na sua composição: revisava e alterava seus textos com a precisão, a paciência e a sagacidade exigidas a um escritor com senso de responsabilidade por seu trabalho”. É a partir dessa perspectiva que o Daniel nos conta as suas percepções sobre a obra literária de Moacyr na nossa série Redescobrindo Scliar. Boa leitura! •••••••••••• Moacyr Scliar também era cirurgião… das palavras Até então, Moacyr Scliar era para mim um escritor cheio de inventividade e intuição, um contador de histórias no seu sentido mais clássico. Características que estavam naturalmente ligadas ao seu jeito franco e tranquilo, repleto de sensibilidade e generosidade. Foram essas as impressões que tive na única vez que conversei com ele, enquanto eu ainda era um jovem repórter fazendo a cobertura da feira do livro de Novo Hamburgo. “Eu venho sempre que me convidam”, disse ele, se preparando para falar a uma turma de escola, “porque a crianças percebem que o escritor é uma pessoa igual a elas, e isso faz com que gostem mais de ler.” E ele estava certo. Mas conhecer a intimidade da sua escrita foi ainda mais revelador. O contato com seus manuscritos arquivados no acervo do Delfos (Espaço de Documentação e Memória Cultural), da PUCRS, me levou a conhecer o Scliar cirúrgico. Não no sentido médico, mas literário. Embora renegasse – por modéstia – o título de escritor profissional, ficou claro para mim, ao folhear seus manuscritos, que era um artista e um profissional que juntava inspiração e dever no seu ofício. Um escritor com intensa responsabilidade perante à palavra e à narrativa. Encontrei um Scliar que não deixava as ideias escaparem da cabeça, e as anotava em qualquer papelzinho que estivesse à mão, fosse o verso de seus prontuários médicos, recibos de compras, guardanapos, o que fosse. E depois se desdobrasse sobre essas ideias, como se tivesse imposto uma missão a si mesmo – a de levar o encanto das histórias à alma dos leitores. Embora o Scliar médico não atuasse como cirurgião, o Scliar escritor era sem dúvida cirúrgico na sua composição: revisava e alterava seus textos com a precisão, a paciência e a sagacidade exigidas a um escritor com senso de responsabilidade por seu trabalho. Em suas versões datilografadas, acrescentavas trechos à mão, cortava palavras desnecessárias ou em excesso, mudava parágrafos de lugar. Depois passava a limpo, para ver o texto emergir em sua versão final ou quase final. Sua preocupação com o que escrevia não era superficial, sua criação não era puramente intuitiva como o resultado nos faz crer, mas repleto de movimentos cerebrais, típicos de um intelectual de seu patamar. Isso certamente evidencia uma preocupação e um respeito com o leitor. Mas também revela um autor preocupado com a essencialidade do texto: não lhe interessava os floreios e as erudições típicas de escritores inseguros ou envaidecidos, mas a essencialidade da história ou da ideia que queria transmitir. Era essa a missão que impunha para si como escritor. E a nós, leitores, cabe a gratidão por seus gestos. DANIEL GRUBER Doutorando em Escrita Criativa pela PUCRS
Redescobrindo Scliar | “O Exército de Um Homem Só” por Elcio Cornelsen

Doutor em Germanística pela Freie Universität Berlin e professor associado da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Elcio Cornelsen analisa “O Exército de Um Homem Só” nesse novo capítulo da série Redescobrindo Scliar. Boa leitura! •••••••••••• Em 1973, Moacyr Scliar lançou a obra O exército de um homem só, cujo protagonista, Mayer Guinzburg aliás Capitão Birobidjan sonha em fundar a “Nova Birobidjan” em solo brasileiro, reeditando o projeto de assentamento coletivo de judeus na Rússia. Em termos estéticos, ironia e humor possibilitam a construção de um espaço político utópico, fruto dos devaneios dessa personagem. Porta-voz de um discurso salvacionista, ao estilo da famosa personagem Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, Mayer Guinzburg se revela contrário a ordens instituídas, assumindo, assim, pelo seu caráter contestatório, uma postura “revolucionária”. “Nova Birobidjan”, aos olhos do Capitão, afigura-se como o lócus para abrigar uma sociedade perfeita e, portanto, utópica, a ser almejada. Portanto, em tempos de franco declínio das grandes “utopias políticas” do século XX, A leitura do romance O exército de um homem só se mostra, deveras, atual. Mayer Guinzburg encerra em si traços quixotescos. Judeu russo que imigrara para a cidade de Porto Alegre ainda menino, o protagonista transforma-se em Capitão Birobidjan, ao decidir erigir em pleno bairro do Bom Fim a “Nova Birobidjan”, fundamentada numa utopia política de caráter socialista. Contrariando o pai, que queria vê-lo tornar-se rabino, Mayer Guinzburg tencionava reeditar em terras gaúchas o projeto levado a cabo na antiga União Soviética, que era, originalmente, o de instalar na Sibéria, às margens dos rios Bira e Bidjan, em 1928, um assentamento para judeus russos, onde estes deveriam manter sua cultura à luz dos ideais revolucionários, mesmo que isso pudesse revelar-se paradoxal. No romance, temos a seguinte passagem que enfatiza o sentido de tal projeto encampado por Mayer Guinzburg: “Birobidjan. Um dia os judeus do Bom Fim reconheceriam a importância deste nome. Birobidjan: a redenção do povo judeu, o fim das peregrinações. Birobidjan!” Noutras passagens, a utopia política é apresentada como algo futuro, por se realizar, como se fosse imaginada e idealizada enquanto algo passível de ser concretizado. Um exemplo disso é o encontro de Mayer Guinzburg com sua namorada Léia e com seu amigo José Goldman, logo no início do romance, momento em que se prefigura o projeto utópico: “Mayer Guinzburg tem idéias. Formarão uma colônia coletiva, Léia, José Goldman e ele. […] Haverá um mastro, onde flutuará ao vento a bandeira de Nova Birobidjan. Semearão milho e feijão. Tratarão as plantas como amigas, como aliadas no grande empreendimento. Criarão um porco – o Companheiro Porco; uma cabra – a Companheira Cabra; uma galinha – a Companheira Galinha. […]”. Por sua vez, a busca pela realização da utopia lança a personagem de Scliar a um estado de demência e, ao mesmo tempo, de marginalidade, enquanto ser rebelde e inconformado, que não tem olhos para mais nada além desse espaço idealizado que crê poder erigir, uma espécie de “Terra Prometida”, como fruto da “revolta solitária de um novo messias”, conforme aponta Gilda Salem Szklo, uma das principais estudiosas da obra de Moacyr Scliar. Portanto, origem, conflito geracional e momento político pré-formatam a personagem que se recusa a aceitar a ordem capitalista instituída, marcada pela exploração e a injustiça, e sonha com uma sociedade utópica, no devir, em que políticas igualitárias seriam adotadas, fazendo com que as mazelas e as desigualdades sociais fossem extintas. Mayer Guinzburg, assim como a famosa personagem de Miguel de Cervantes, corre contra moinhos de vento, fadado a se estatelar em seu projeto messiânico. Se a obra-prima de Cervantes apresenta um estágio de decadência do romance de Cavalaria medieval, podemos entender a personagem de Scliar como representação do declínio das utopias políticas. Nesse sentido, o humor tem papel decisivo, pois a aparente demência da personagem produz o rizivel, despertado pelo absurdo de sua proposta política utópica. Em tempos de liberalismo selvagem, entretanto, o romantismo ideológico de Mayer Guinzburg parece estar em baixa, soterrado pelo ressentimento classista em sociedades marcadas historicamente pela exploração e desigualdade social. Talvez aqui, extraído de seu discurso perpassado pela crença messiânica de mundos utópicos, tal brado revolucionário do Capitão Birobidjan possa soar deveras atual: “Nada tens a perder, a não ser os teus grilhões!” ELCIO LOUREIRO CORNELSEN Doutor em Germanística pela Freie Universität Berlin, Alemanha; Professor Associado IV da Faculdade de Letras da UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, atuando nas áreas de Língua e Literatura Alemã (graduação), e de Teoria da Literatura e Literatura Comparada (pós-graduação)
Redescobrindo Scliar | As faces da verdade: história, biografia e ficção em Moacyr Scliar

Recentemente lançado na Croácia, o romance “A Majestade do Xingu” ganha uma nova leitura a partir da análise do mestrando em literatura da UFRGS, Alisson Preto Souza. Ele é o mais novo convidado da nossa série Redescobrindo Scliar, onde amigos, colegas e admiradores desbravam obras que também merecem amplo reconhecimento na carreira do escritor. Não percam, abaixo, o texto do Alisson! •••••••••••• Moacyr Scliar, escritor e médico que focaliza suas criações literárias em questões relacionadas à identidade judaica e à diáspora, com mais de cem obras escritas, publica, em 1997, a obra A Majestade do Xingú. Obra que traz um narrador que relata, em primeira pessoa, às adversidades da vida de uma família judaica para deixar seu país de origem e buscar a oportunidade no Brasil. A importância da literatura como potência para um esclarecimento histórico e político na construção da identidade é irrevocável. Um dos aspectos da literatura de Scliar é esta articulação entre discursos que navegam entre história, ficção e memória atravessada, sobretudo, pela movimentação da identidade judaica. Dentro de suas especificidades, essas literaturas revelam tanto as performances de identidades migrantes quanto as pedagogias para a construção da nação brasileira. Consequentemente, no espaço de múltiplas performances culturais, sobreposições, acabam abafando, oprimindo e suprimindo práticas culturais de certas comunidades, como assim destacam os estudos culturais. Curiosamente, alguns autores resolvem contar essas histórias apagadas e tão infrequentes dentro dos sistemas de ensino e do âmbito público: um exemplo desses autores é Moacyr Scliar. A obra A Majestade do Xingu é narrada por um homem que fala com o doutor a respeito de uma trajetória significativa de sua vida: o encontro com uma figura que admira que é Noel Nutels. O narrador retoma a trajetória imigratória de sua família e considera contar a história um ato de extrema pertinência. O fenômeno da imigração no Brasil está presente na obra A Majestade do Xingú uma vez que a trajetória do narrador tem início nos cenários do leste-europeu, e destino no clima e espaço tropical do nordeste brasileiro, onde o povo judeu teria oportunidade para exercer sua liberdade e seus negócios. Neste incrível romance, o mote para a imigração está associado as questões relacionadas à repressão da identidade judia e as condições de vida no leste europeu: a fuga dos pogroms, dificuldades relacionadas à peste branca e as condições de subsistência da família. A presença – pouco registrada pela história do Brasil – do personagem Noel Nutels na narrativa de Scliar traz à obra traços biográficos que se fundem à história do narrador judeu. Nutels fora um médico judeu importante no que concerne o bem-estar indígena. Em 1913, ele nasceu na atual Ucrânia. Em 1921, imigrou para o Brasil residindo em Pernambuco por algum tempo. Em 1938, formou-se em Medicina no Rio de Janeiro. Em 1943, foi o médico da primeira expedição do Roncador-Xingú, aliado a um programa governamental chamado Marcha para o Oeste criado durante o Estado Novo. Tanto a conversa com o médico na UTI, o desejo do pai do personagem-narrador, quanto a figura de Nutels são índices da importância da medicina como ferramenta para mudança social. A medicina é o pano de fundo que costura tanto a interioridade quanto a exterioridade da narrativa de Scliar. Mesmo com toda relevância na história nacional brasileira, a história de Nutels não é nem popularizada tão pouco reconhecida pelas pedagogias que dizem o que é importante saber, ou não, sobre o Brasil e sobre o judeu. Através da relação entre Nutels e o narrador, ao longo da trajetória dos personagens, percebe-se um desejo inconsciente e comum relativo à realidade e cultura judaica: deter um lugar de valor e reconhecimento no estrato da comunidade judaica através da medicina. Este lugar está relacionado à profissão de médico. Os médicos possuem um papel social importante na comunidade judaica. Através do estudo, mesmo os pobres podem tornar-se médicos. Só assim, de fato, os pobres possuem a oportunidade de ter algum reconhecimento valioso dentro de sua cultura. Os médicos geralmente atendem a família dos condes e são tratados com todo luxo, tendo fartura uma ótima hospedagem e seus desejos atendidos. Apenas pessoas ricas poderiam hospedar, pagar e prover aos médicos. Sobretudo, destaca-se que, tanto o medico como seus familiares ganhariam passe-livre nas perseguições religiosas: um título que concede ao homem e sua família uma espécie de neutralidade político-religiosa, segurança e riqueza. Este aspecto é importante uma vez que Nutels, ao chegar no Brasil interessa-se as questões indígenas. O indígena no Brasil perde o território e sofre com a disseminação de doenças trazidas pelos europeus séculos anteriores. Scliar decide retomar uma dessas histórias mal ou pouco contadas referente à incursão da cultura judaica no Brasil, e escolhe ir mais além, homenageando Nutels, um judeu que escolheu preocupar-se com uma das questões até então mais relevantes da construção da identidade brasileira que é a exclusão, o descompromisso de diversas ordens e o esfacelamento da cultura indígena no país. A presença da identidade judaica no Brasil é expressa através da escrita de Scliar, que assim como Noel Nutels e o narrador, possui ascendência judaica. Scliar é filho de imigrantes judeus nascidos em Bessarábia, e mesmo embora a obra trate a respeito da presença do estrangeiro no Brasil, também homenageia um judeu pela empatia e cuidado por um povo que não é o seu. Uma das referências a esta homenagem se dá no título da obra que brinca com as palavras “Majestade” e “Xingú”. Por um lado, a palavra “Majestade” traz uma referência não só ao nome do que viria ser a loja do narrador. Por outro, traz também as histórias dos tzares, supremos conquistadores ou monarcas do leste europeu. Em relação à palavra “Xingú”, esta é reveladora de uma área em que vive a maior concentração indígena do país, sublinhando o interesse voluntário de Nutels com as minorias no Brasil. A Majestade do Xingú expõe a maestria de Scliar no processo de criação literária que usa a biografia para expressar a voz da identidade judia. Apesar de utilizar a história de um